terça-feira, 22 de setembro de 2015

O HOSPITAL REAL DE TODOS OS SANTOS EM LISBOA

 



 

Durante todo o período da Idade Média a medicina praticava-se a nível das Ordens Religiosas e mosteiros que congregavam o conhecimento teórico em vastas bibliotecas, concentrando também os eruditos capazes de ler, interpretar os textos de autores antigos (que mencionavam as doenças e terapêuticas), assim como transcreve-los, dispunham igualmente de instalações para acolher e dar assistência aos peregrinos, pobres e doentes, funcionando como verdadeiras enfermarias. Como exemplo o Mosteiro de São Vicente de Fora onde funcionou um dos mais importantes hospitais da cidade Lisboa na época medieval, e a sua botica que se manteve por mais alguns anos, tendo ai sido escrita a primeira farmacopeia portuguesa, escrita por um cónego regente de Santo Agostinho. É no entanto o rei D. João II (1455-1495), quando ainda príncipe herdeiro, que cria o Hospital Real de Todos os Santos, hoje designado por Hospital de São José, tendo este obtido autorização da Santa Sé pelo papa Sisto VI, a 13 de agosto de 1479, para reunir os rendimentos de diversos pequenos hospitais de Lisboa e seu termo, a fim de construir um "grande hospital" destinado à assistência de pobres e enfermos da capital. Como se destinava a servir essencialmente os pobres, ficou realmente conhecido na altura também por Hospital dos Pobres. O monarca recorreu ainda a doações pessoais, a rendimentos de bens vinculados, de agremiações dos ofícios mecânicos e doações feitas por particulares, entre outros. O lançamento da primeira pedra do o Hospital Omnium Sanctorum (Hospital de Todos os Santos), teve lugar em 15 de maio de 1492, mas a construção só ficou concluída no reinado de D. Manuel I (1469-1521). De referir por curiosidade que a designação em latim Omnium Sanctorum, (Hospital de Todos os Santos), deu origem ao "O" com o "S" no meio e que ainda é utilizado como logótipo do actual Hospital de São José. A sua edificação foi feita em terrenos da cerca do convento de São Domingos de Lisboa, os quais correspondem à actual Praça da Figueira, tendo sido o mestre arquitecto Diogo de Boitaca (1460-1528), realmente o responsável pela direcção da construção do Hospital Real de Todos os Santos e da igreja, embora o seu sogro Mateus Fernandes (um dos responsáveis pela construção do Mosteiro da Batalha) fosse o projectista, que seguiu os padrões manuelinos comuns da época. O vedor (fiscal), de obras foi o fidalgo Nuno Martins da Silveira, e o vidreiro João Varela que também contribuiu para este novo e grande hospital com os seus vitrais. O interior da igreja tinha de cada lado quadros com os retratos dos reis de Portugal, sendo os tectos pintados por Fernão Gomes (1542-1612), em dourado tal como os tectos da sala dos brasões no Palácio Real em Sintra, ao estilo maneirista. As obras foram amaldiçoadas e mal vistas pelos judeus e mouros (à época ainda existentes alguns em Lisboa), pois as pedras para a construção vieram em parte das campas e cabeceiras de jazigos de mouros e do cemitério de judeus.

 
    Apoio dado aos pobres e doentes pelas ordens religiosas na Idade Média (arq. priv.)


    Ordem religiosa da Idade Média cuidando de doentes dois por cama como era habito na época (arq. priv.)




                                                                    Rei D. João II 1455-1495 (col. priv.)




                                                                            Azulejo com as siglas Omnium Sanctorum (col. priv.)




                                                                 Rei D. Manuel I 1469-1521 (col. pess.)
 


     Aspecto do Rossio e o Hospital Real de Todos os Santos em meados dos séc. XV, gravura de Braunio (arq. priv.)
  
 
 
 
Ambiente do quotidiano frente ao Hospital Real de Todos os Santos
em meados dos séc. XVI (arq. pess.)
 
 
 
Projecto de pintura do tecto da nave da igreja do Hospital Real de Todos os Santos
 por Fernão Gomes(arq. BNP)
 
 
 
                                                      Pormenor do tecto da sala dos brasões no Palácio Nacional de Sintra idêntico ao
                                                                       executado no Hospital Real de Todos os Santos (arq. pess.)





O edifício do Hospital Real de Todos os Santos dispunha de três pisos, tinha uma fachada principal com cerca de 100 metros em estilo manuelino a meio, onde se encontrava a igreja do hospital voltada para o Rossio a poente, (onde actualmente se situa parte da Praça da Figueira), à qual se acedia por uma escadaria monumental com arcadas no piso térreo. O edifício tinha por limite o convento de São Domingos a norte, a Rua da Bitesga (actual Betesga) a sul e a rua do Borratem a nascente. Era uma construção em forma de cruz, com os quatro braços iguais, correspondendo o braço com o portal para o exterior à igreja e os outros três às enfermarias no piso superior, duas de homens: São Vicente e São Cosme e uma de mulheres: Santa Clara. No centro da cruz ficava o altar mor o que permitia a todos os doentes assistir aos ofícios divinos. Por de trás das camas ficavam portas que permitiam retirar os cadáveres sem que os outros doentes disso se apercebessem. Havia também junto a cada cama armários para os doentes guardarem os seus objectos pessoais. Era uma prática comum pela Europa desse tempo nos hospitais, colocar dois doentes no mesmo leito. Só foi proibida após o terramoto de 1755 "... não se consinta em cada leito mais de uma pessoa." No piso intermédio situavam-se os alojamentos dos funcionários residentes, incluindo o provedor. O edifício tinha várias dependências anexas que serviam de apoio às enfermarias, no piso térreo: botica, cozinha, forno, refeitório, despensa, lavadouros, serviços administrativos e instalações para os funcionários (cerca de 50). Nesse piso inferior encontravam-se ainda cerca de quarenta camas para ambos os sexos onde ficava a albergaria ou "casa dos peregrinos". O hospital tinha também um vasto logradouro, claustro, um poço com agua potável e um cemitério privativo. Incluía ainda uma quinta com pomares e uma horta tão extensa que produzia hortaliça suficiente para o consumo do pessoal e dos doentes assim como a produção de plantas medicinais utilizadas para o fabrico das mezinhas administradas.


     Painel de azulejos de oficina em Lisboa, da 1ª metade do século XVIII ,1740 (col. Museu da Cidade, Lisboa)



 Planta topográfica da zona ocupada pelo Hospital Real de Todos os Santos em 1750 (arq. BNP)

 
                                                                                   Desenho da fachada manuelina da igreja do
                                                                                   Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)


     Ambiente hospitalar e tratamentos no séc. XV idênticos aos do Hospital Real de Todos os Santos (col. priv.)
   


    Instrumentos cirúrgicos dos séc. XV e XVI idênticos aos usados
                                                                        na época pelo Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)
                      


                                                O físico e o boticário da obra Medicinarius de 1505 (col. priv.)

 
                    
Actividades diárias na enfermaria de um hospital dos séc. XV/XVI (col. priv.)

 
 


A instituição, que começou a funcionar ainda antes do edifício estar concluído, foi baptizado com o nome de Hospital Real de Todos os Santos, comprovado pela documentação da época, que datam de 1502 os primeiros internamentos, sendo que em 1504 estavam já em funcionamento as enfermarias. O rei D. Manuel I seguiu as instruções deixadas em testamento pelo seu antecessor, quer no que respeita à construção quer à sua organização, e, em 1504, concedeu-lhe regimento, no qual estabelecia o seu funcionamento, participaram na sua elaboração o cónego Estêvão Martins e o Cardeal Alpedrinha. O primeiro Provedor do Hospital Real de Todos os Santos, foi Estevão Martins mestre Escola da Sé de Lisboa. O regimento do hospital (datado de 1504), foi elaborado por Estêvão Martins e outorgado por D. Manuel I, tendo sido influenciado pelos estatutos dos hospitais de Santa Maria de Siena e Santa Maria Nova de Florença.
As categorias e o número de funcionários de cada uma deles eram: capelães, provedor (director), escrivão do provedor, vedor (inspector/fiscal), hospitaleiro, um físico (médico), dois cirurgiões, dois ajudantes de cirurgião, almoxarife, escrivão do almoxarife (contabilista, tesoureiro), doze enfermeiros, cozinheiro, porteiro e guarda portas, um boticário (farmacêutico), três ajudantes de botica, enfermeira de mulheres, cristaleira (mulher que ministrava os clisteres), lavadeira, costureira, despenseiro, barbeiro e sangrador. Como empregados para servirem o provedor, atafoneiro (moleiro), assadeira e forneira. O regimento estipulava ainda as obrigações e tarefas de cada um bem como os seus vencimentos. Todos lá residiam, com raras excepções, era uma benesse nessa altura, residir e alimentar-se no hospital. Nas tarefas diárias do hospital, tinha o físico, de fazer a visita de todos os doentes, ao nascer do sol e às duas da tarde, devia ser acompanhado nestas visitas pelo provedor, pelo cirurgião e pelo boticário, o vedor, o hospitaleiro, e pelo enfermeiro-mor da respectiva enfermaria. Nessas visitas deviam tomar o pulso de cada doente, e observar a sua urina apresentada pelos enfermeiros menores. O físico indicava os preparados a dar a cada um dos doentes, e por sua vez o boticário deveria compô-los de acordo com as instruções dadas e registadas num papel encarnado. Nestas visitas o enfermeiro registava na "tavoa" (ficha médica) de cada doente a dieta prescrita que seria assinada pelo físico ou pelo cirurgião. O cirurgião que residente no hospital, tinha ainda funções de ensino, como dar lições teóricas e práticas diariamente, para a formação de cirurgiões novos que entrariam para o serviço do dito hospital. Aos enfermeiros cabia além da higiene pessoal dos doentes, a muda das camas e a limpeza das enfermarias, teriam ainda de administrar aos doentes as purgas, lamedores, unções e outras mezinhas prescritas pelo físico. As latrinas eram limpas pelos enfermeiros menores e escravos africanos, duas vezes por semana no Verão, e uma no Inverno, tinham também como obrigações os enfermeiros, retirar os mortos sem os outros doentes verem, amortalhá-los e enterrá-los. Algumas profissões foram desaparecendo ao longo dos anos, é o caso curioso da profissão de barbeiro-sangrador que foi extinta só em 1870.


                              Aspecto da cidade de Lisboa em 1598 vendo-se o Hospital Real de Todos os Santos (col. priv.)

 

    Reconstituição da fachada dos edifícios do Hospital Real de Todos os Santos em meados do séc. XVI (arq. priv.)

 
                                       Visita diária da equipa médica a uma enfermaria em meados dos séc. XVI e XVII,
                                                        como a que se verificava no Hospital Real de Todos os Santos (col. pess.)
                   
                                   
 
                                    
Mesa do boticário do Convento de Mafra idêntica à do
 Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)


Instrumentos médicos e cirúrgicos do séc. XVI (col. priv.)

      Aula de cirurgia no séc. XVI idêntica às leccionadas no Hospital Real de Todos os Santos na época (col. priv.)



                           Barbeiros sangradores do séc. XVI executado sangria e observado paciente tal como acontecia
                                                                   à época no Hospital Real de Todos os Santos (col. priv.)



                                              Carta do provedor e oficiais do Hospital Real de Todos os Santos para o rei em 1518,
                                              com o relato do estado do hospital e as dificuldades (arq. Nacional da Torre do Tombo)
   

 

 
O primeiro físico foi o mestre Burgalês doutor Delimylam, que foi dispensado por não ser suficientemente bom, e substituído a 13 de abril de 1509 pelo Mestre Jorge de Almeida, físico e cirurgião. O primeiro cirurgião foi Mestre Pedro, nomeado a 18 de fevereiro de 1502, e que vivia dentro do hospital iniciando o ensino cirúrgico em Portugal, e Mestre Gonçalo que vivia fora do hospital. Havia também um boticário, e quem preencheu pela primeira vez este cargo, foi Álvaro Rodrigues. O Hospital Real de Todos os Santos, foi concebido, inicialmente, par albergar cerca de 250 doentes, já no século XVI o hospital tratava cerca de três mil doentes ao ano. De referir que a mortalidade rondava os 20%, um quinto dos doentes admitidos neste hospital. Não há no regimento original do Hospital Real de Todos os Santos referência a qualquer sala de operações, mas é em meados do século XVI, que ali será instituído o ensino da cirurgia, complementado com dissecação anatómica em cadáveres.
As cirurgias praticadas eram basicamente, segundo os registos e ilustrações da época, trepanações e as amputações, processos cirúrgicos esses que se mantiveram até muito tarde. Por sua vez os tratamentos  consistiam em: banhos, purgas, xaropes, mezinhas, místicas, água de cevada, sangrias, ventosas, panaceias, unguentos, limonadas, águas de cheiro, sanguessugas, laxativos, vesicatórios, pó da raiz do Angelicô etc.
O Hospital Real de Todos os Santos era gerido por um provedor da confiança do rei, isto até 1530, data em que a gerência passou para os padres da Congregação de S. João Evangelista. Só a partir do ano de 1564 é que passou para a responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O rei D. João III (1502-1557), mandou reparar algumas dependências e erguer outras, como a designada "casa de doidos", uma divisão para doente mentais e outra para crianças abandonadas "os expostos", que eram entregues até aos 3 anos de idade e depois ao cuidado de amas externas, assim como uma enfermaria para convalescentes, dando ao mesmo tempo várias esmolas em dinheiro, drogas, cera, açúcar, roupas e outras. Os doentes eram separados em função do sexo e da patologia, havendo ainda uma secção privada para os doentes nobres. Para além das enfermarias, existiam também a designada "casa das boubas", uma divisão isolada para doentes com sífilis, o que nessa época era considerada como um castigo para os pecadores, sendo vergonhosa e portanto escondida da sociedade. De salientar que nesta época no Hospital Real de Todos os Santos se desenvolveram estudos no sentido da tentativa do tratamento da sífilis que no entanto continuou a ser tratada a base de Mercúrio com Guaiaco. Havia ainda um banco destinado a todos os doentes que fossem em urgência ao hospital, onde depositavam as "águas", as suas urinas que depois eram observadas antes de decidir o seu internamento. Esse banco em que eram observados os doentes por ordem de chegada, julga-se estar na origem da designação única dada às urgências ainda hoje em Portugal de "banco". No dia 27 de outubro de 1601 cerca da 1 hora da madrugada, deu-se o primeiro grande incêndio no Hospital Real de Todos os Santos que destruiu todos os quadros dos Reis de Portugal e as pinturas maneiristas dos tectos da igreja. Outros incêndios se seguiram e foram destruindo o que se reconstruira durante décadas.


    Reconstituição do aspecto geral dos edifícios do Hospital Real de Todos os Santos no séc. XVI (arq. priv.)



Instrumentos cirúrgicos dos séc. XVI e XVII iguais aos usados neste período 
 no Hospital Real de Todos os Santos
 (arq. Library, London)


                                                             Técnica cirúrgica de amputação no séc. XVI tal como as praticadas
                                                                         à época no Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)


Técnica cirúrgica da trepanação em 1517 tal como as praticadas
                                                                      na época no Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)
 
 
 
Almofarizes de boticário do séc. XVII e XVIII (col. pess.)
 
 
 

          Tratamento de banhos praticado no Hospital Real de Todos Santos
nos meados dos séc. XVI e XVII (col. priv.)
 

Utilização de sanguessugas como tratamento em 1638, praticada
 no Hospital Real de Todos os Santos (col. priv.)



     


 
                                           Recipientes e mangas de botica em cerâmica dos séc. XVI a XVIII idênticos aos utilizados
                                                                        no Hospital Real de Todos os Santos (col. pess. e priv.)


                   

                                                                                            Rei D. João III 1502-1557 (col. pess.)

                                                                                       

     Representação em maqueta do Hospital Real de Todos os Santos no séc. XVI (col. Museu da Cidade, Lisboa)



Tratamento da sífilis no séc. XV com Mercúrio e Guaiaco idêntico ao aplicado
na "casa das boubas" instituída no séc. XVI  (col. priv.)
 


Fachada principal do Hospital Real de Todos os Santos no séc. XVII (col. pess.)


                                       
                                      Vista geral da cidade de Lisboa e seu crescimento no séc. XVII (col. pess.)



 

Em 1644 os enfermeiros leigos portugueses voltaram para o hospital, pois tinham sido despedidos em massa pela Mesa da Misericórdia, voltando mais tarde porque em sua substituição tinham colocado os irmãos Obregões, espanhóis, tendo-os autorizado a tratar doentes. Só que após muitas incompetências que foram perpetuando, foram submetidos a inquéritos e a conclusão foi; "provou-se a sua incapacidade profissional e moral, sendo expulsos para sempre do Reino". A provedoria do hospital a cargo da Santa Casa da Misericórdia, criou o cargo de Enfermeiro-Mor sendo o primeiro designado o conde de Odemira, D. Sancho de Faro. Ao longo dos tempos outras fontes de rendimento foram concedidas ao hospital, nomeadamente provenientes das licenças para representação de óperas e comédias cujo direito foi atribuído ao hospital por Carta Régia, de 9 de abril de 1603. Esta doação foi substituída em carta de padrão com salva, a 20 de novembro de 1759, por 1.300$000 réis de esmola, pagos em quartéis pelos rendimentos da Casa da Moeda. Posteriormente a lotaria foi outro dos rendimentos do hospital. O edifício sofreu alguns danos com o incêndio que ocorreu em 1601 e ficou parcialmente destruído devido a outro incêndio, este em 1750 que atingiu a igreja e várias dependências pelo que o rei D. José I (1714-1777), ordenou a compra de várias propriedades destinadas à sua reconstrução. O Hospital Real de Todos os Santos foi o hospital mais importante de Lisboa durante os séculos XVI, XVII e XVIII e chegou a ter 12 enfermarias em 1750. Possuía ainda o hospital espaços onde se cuidava da alma, e que não eram de menos importância. Dispersos pelo corpo do edifício do hospital e na sua cerca, para além dos altares portáteis de apoio às enfermarias e da extraordinária Igreja, existiam várias ermidas, a de S. Mateus (que a partir de 1759 foi ocupada pela Ordem de São Camilo de Lélis, especialistas no amparo de doentes); a de Nossa Sª do Amparo debaixo das arcadas do Rossio, ligada à enfermaria dos incuráveis; a de Nossa Sª da Graça, situada na horta do Hospital e a de Nossa S.ª da Conceição de religiosos Arrábidos. Menos conhecida era a pequena ermida, também votiva ao culto mariano, com a invocação de Nossa Senhora da Apresentação. Localizada numa das suas varandas, celebravam naquele local missa os clérigos confessores dos doentes e todos os sacerdotes que ali quisessem celebrar a eucaristia. Estava ao cuidado dos enfermeiros que lhe faziam uma grande festa no dia 21 de novembro. O incêndio de grandes dimensões que atingiu o hospital no dia 10 de agosto de 1750 destruiu a pequena ermida, mas dada a sua importância no amparo espiritual aos doentes, o Conde de Valadares, enfermeiro-mor do hospital em 1752 pediu o seu restabelecimento devido “mais que tudo ao perigo em que se acham os enfermos de se lhes não administrarem os sacramentos com prontidão”. O ensino da anatomia conheceu largos intervalos ao longo do tempo, ainda assim, a cirurgia ensinada no Hospital Real de Todos os Santos, baseada na prática dos curativos no hospital, conheceu grande reputação em Portugal. O cirurgião português Manuel Constâncio adquiriu certa nomeada sendo considerado o restaurador dos estudos anatómicos entre nós. Com o grande terramoto de 1 de novembro de 1755, ironicamente dia de Todos os Santos (tema a desenvolver em próximo artigo), que atingiu essencialmente a parte baixa da cidade de Lisboa, o edifício ficou quase completamente arruinado, ainda assim e apesar do incêndio que se seguiu, sobreviveram algumas partes do hospital, como se pôde comprovar nas escavações arqueológicas de 1960 aquando das obras para o Metropolitano de Lisboa e mais recentemente no ano 2000 nas obras do novo parque de estacionamento subterrâneo da Praça da Figueira. É pois um mito quando se afirma que o edifício deste hospital foi totalmente destruído pelo grande terramoto de 1755 e que terá acabado por esse motivo. Como algumas partes do edifício do Hospital Real de Todos os Santos se aguentaram com o impacto do terramoto, o edifício chega a ser parcialmente reconstruído, voltando a funcionar, mas com muitas limitações. Faltava dinheiro para obras de maior vulto e em 1761, não dispunha de um único instrumento cirúrgico, quando eram precisos pediam-se emprestados.


                                         Praça do Rossio em 1740, visível o Hospital Real de Todos os Santos, o chafariz do Rossio,
                                                                           e o Convento de São Domingos de Lisboa (col. priv.)



                                                     Tipo de seringa utilizada no séc. XVII (col. priv.)



                                                       Processo da trepanação em meados do séc. XVII (col. priv.)



                                
                                        Relação dos Gastos que a Mesa dos Santos Innocentes no Hospital Real de Todos os Santos,
                                                                                                 publicado em 1707 (col. priv.)



                                                                                          Rei D. José I 1714-1777 (col. priv.)




Marcadores com números das camas das enfermarias
do Hospital Real de Todos os Santos
utilizados no séc. XVIII
(col. Museu da Cidade, Lisboa)



     Enfermaria do séc. XVIII no Convento de Mafra idêntica às do Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)



Vasilha em cerâmica para recolha de líquidos pertencente
 ao Hospital Real de Todos os Santos
de meados do séc. XVIII
 (col. Museu da Cidade, Lisboa)



     Vista geral do Hospital Real de Todos os Santos no início do séc. XVIII depois de sucessivas obras (col. pess.)



Terramoto de Lisboa em 1 de novembro de 1755, seguido de incêndios e onda de destruidora (col. priv.)
 
       

                                                           Ruínas de Lisboa após o terramoto de 1755, os sobreviventes viveram
                                                           em tendas assim como as instalações hospitalares da cidade (col. priv.)






    Ruínas do Hospital Real de Todos os Santos a descoberto na Praça da Figueira em 1960 (arq. CML)


               
                                                
                  
                                              Achados arqueológicos do Hospital Real de Todos os Santos
                                                            encontrados durante as escavações de 1960 (arq. priv.)



Escavações na última intervenção devido às obras para a construção do parque de estacionamento
 subterrâneo na Praça da Figueira em 2000 (foto CAL)


 
 
                                                               Estátua equestre do rei D. João I na Praça da Figueira na actualidade, 
                                                                 outrora ocupada pelo Hospital Real de Todos os Santos (arq. priv.)
                                                

 


Logo após o terramoto de 1755 foram erguidos hospitais provisórios no mosteiro de São Bento da Saúde, Palácio dos Condes de Castelo Melhor e no Palácio dos Almadas, depois no Rossio e às Portas de Santo Antão, enquanto se faziam as adaptações necessárias no Colégio de Santo Antão, que pertencera aos jesuítas e confiscado por ordem do Marquês de Pombal em 1759. Iniciaram-se obras de reconstrução do Hospital Real de Todos os Santos no Rossio, principalmente da igreja e enfermarias, depois de vários projectos apresentados por diversos arquitectos. As obras foram lentas e a título provisório, ora com o apoio dos frades franciscanos de Santa Maria da Arrábida ora com apoio do Estado. No entanto todas as verbas se utilizavam na reconstrução e adaptação do edifício do Colégio de Santo Antão, certamente uma opção mais barata. Vinte anos depois, em 1775, procedeu-se à transferência dos doentes e serviços para as novas instalações. As edificações onde tinha funcionado até esse ano o Hospital Real de Todos os Santos foram demolidas para dar lugar à actual Praça da Figueira, no reinado de D. Maria I. Sob a orientação do então enfermeiro mor, Francisco Furtado de Mendonça, os habitantes de Lisboa, incluindo a nobreza da corte e as comunidades religiosas, ajudaram a transportar as macas com os doentes e feridos. O novo hospital passou a chamar-se Real de São José, homenagem ao monarca, o rei D. José I, mantendo-se a estrutura orgânica e funcional que tinha antes do terramoto. Dando continuidade às técnicas médicas e cirúrgicas anteriores e as que foram surgindo e evoluindo com o início do novo século. No século XIX a necessidade de expansão motivada pelas epidemias, o aparecimento de novas doenças, o avanço da medicina, levou à anexação de vários edifícios, alguns deles monásticos, vagos com a extinção das ordens religiosas, passando a instituição a chamar-se Hospital Real de São José e Anexos. Mas necessitava de muitas obras de adaptação, destacando-se em 1811 o conde de Galveias, D. Francisco de Almeida Mello e Castro, na altura Enfermeiro-Mor, que entre os vários melhoramentos mandou fazer o pórtico, de influência italiana que glorifica a expulsão da terceira invasão francesa, comandada pelo General André Massena, e entre outros, a colocação na fachada principal do edifício das estátuas em mármore dos apóstolos, que estavam colocadas na nave principal da Igreja do Colégio antes de ser destruída pelo terramoto. Como curiosidade, refira-se que no designado pátio do relógio até meados do século XIX, estava dividido a meio por uma grade de ferro, servindo de logradouro a doentes do foro mental deste hospital. Com o culminar da tradição dos estudos anatómicos em Portugal e por grande empenho do grande cirurgião Manoel Constâncio surge, em 1825, a Real Escola de Cirurgia por Decreto de D. João VI, que veio a dar origem à Escola Médico-cirúrgica de Lisboa. A Escola de Cirurgia, o Banco de Urgência e grandes nomes da medicina portuguesa foram referências do Hospital Real de São José e Anexos. Este hospital acompanhou ao longo do século XIX toda a evolução da medicina assim como a aplicação das novas técnicas e descobertas científicas nesta área, no entanto os relatórios apresentados então ao rei pelos enfermeiros mor, nomeadamente quando tomavam posse do lugar, testemunham as dificuldades e os problemas com que a assistência se debatia. No século XIX vários regulamentos e portarias tentaram melhorar os serviços. Em 1889 pelo Ministério do Reino foi dada ordem para se proceder a obras de adaptação e melhoramento do edifício, este processo terminou em 1898. Em 1901 o funcionamento da instituição foi completamente remodelado pelo enfermeiro mor Curry Cabral.


                                Fachada do Hospital Real de São José em 1850, antigo Colégio de Santo Antão (col. priv.)



                             Instrumentos médicos cirúrgicos de 1617 idênticos aos usados ainda no Hospital Real de São José 
                                                                                    em finais do séc. XVIII (col. priv.)
 

                                                                         A técnica da trepanação mantida no final do séc. XVIII
                                                                                      no Hospital Real de São José (col. priv.)



                                                        Liteira para transporte de doentes legada por Joaquim António de Aguiar
                                                                                    ao Hospital Real de São José (col. HSJ)

                                                        
Sistema de condução de doentes por galegos ao Hospital Real de São José
 no inicio do séc. XIX, por Alfredo Roque Gameiro 
(col. pess.)



Pórtico da entrada sul do Hospital Real de São José em 1844 (col. priv.)
 
                               


                                                     Estojo com ferramentas de cirurgião do séc. XIX idênticas às usadas
                                                                                      no Hospital Real de São José (col. priv.)


                                          Pulverizador de Lister para substâncias anticépticas do séc. XIX
                                                                idêntico aos utilizados no Hospital Real de São José (col. MN)


Utilização do pulverizador de Lister numa cirurgia em meados de 1882 (col. National Library of Medicine)
     

                                                            Recipientes com substâncias do Laboratório de Farmacologia séc. XIX
                                                               (col. do Gabinete de Museologia da Faculdade de Medicina de Lisboa)



Visita do rei D. Manuel II ao Hospital de São José
 in Illustração Portugueza de 1908 (col. pess.)

 

 

Com a implantação da República, a estrutura aprovada em 1901 manteve-se, deixando, no entanto, o hospital de ter a designação de Real e, em 1913, a designação passou a ser a de Hospitais Civis de Lisboa, designação essa que se manteve até 1958. Neste ano, com a criação da Direcção Geral da Saúde, a designação de Hospitais Civis de Lisboa foi revogada, ficando os hospitais, cada um per si, dependentes da referida Direcção, voltando a existir o Hospital de São José. Os Hospitais Civis de Lisboa foram uma escola médica extremamente exigente para a formação pós - graduada dos médicos que neles procuravam especializar-se. Caracterizada por uma selecção rigorosa de quem concorria aos seus quadros, marcou de forma positiva o panorama da saúde em Portugal durante grande parte do século XX. Com a criação do Ministério da Saúde, a autonomia dos Hospitais Civis de Lisboa ficou limitada, tendo desaparecido completamente em 1961, com a criação da Direcção Geral dos Hospitais Civis. A organização do hospital sofreu diversas alterações. O último regulamento data de 1993. A portaria n.º 11/93 de 6 de janeiro, do Ministério da Saúde, reconheceu que o surgimento de novas especialidades e subespecialidades e das progressivas exigências qualitativas de quem recorre aos hospitais, obriga a uma maior complexidade e diferenciação na organização hospitalar. A portaria refere também a importância de regulamentos internos. Este regulamento é assinado em 20 de novembro de 1992 e nele se define os seus objectivos, funções e valências; estrutura dos serviços de assistência: departamentos, serviços e áreas funcionais. Posteriormente a este diploma outros foram publicados sobre diversos assuntos respeitantes aos serviços hospitalares, mas que não alteram o regulamento interno referido. Com a documentação de arquivo que constitui este fundo foram incorporados algumas revistas médicas, e monografias, na sua maioria respeitantes a doenças e evolução da medicina, à história do Hospital Real de Todos os Santos e a médicos que de algum modo se destacaram na sua profissão.
Quanto ao edifício, sobreviveu a primitiva sacristia, hoje capela do hospital e classificada como Monumento Nacional, sendo de destacar o pórtico sul, encimado pelo brasão de D. José I, que dá acesso a um pátio com estátuas dos apóstolos pertencentes à igreja do extinto convento e os azulejos da escadaria do hospital. Nos últimos anos o Hospital de São José tem vindo a modernizar-se com os limites decorrentes da sua origem conventual. Actualmente o Hospital de São José é um hospital central da Grande Lisboa com especial vocação entre outras, para doentes poli-traumatizados, integrando o Centro Hospitalar Lisboa Central. Este estabelecimento hospitalar viu nascer novas especialidades como a Cirurgia Plástica e Reconstrutiva, a Cirurgia Maxilo - Facial e as primeiras unidades de Cuidados Intensivos, de Queimados, de Neurotraumatologia e Vertebro-Medular. Tal como em todos os outros hospitais do grupo nele pratica-se uma medicina moderna com tecnologia avançada em edifícios antigos e reconstruídos. Juntando ciência e arte naquele que é um dos mais importantes monumentos de Lisboa.


                                     Aspecto geral do Hospital de São José no início do séc. XX (arq. AML)



Enfermaria do Hospital de São José no início do séc. XX (arq. AML)



     Aparelho de Raio X do início do século XX idêntico ao utilizado no Hospital de São José (arq. priv.)
 
   
                              Uma cirurgia no Banco do Hospital de São José em 1910, suplemento do Século (col. priv.)
 

                                     Esfigmomanómetro, aparelho medidor de tensão do princípio do séc. XX (col. priv.)
 
 
Aparelho de anestesia por clorofórmio do início do séc. XX (col. priv.)
 
 
                            Dr. Miguel Bombarda antes da operação no Hospital de São José em 3 de outubro de 1910,
                                                                                           foto Joshua Benoliel (arq. priv.)
 
 
     Paciente em enfermaria do Hospital de São José em meados de 1910, foto Joshua Benoliel (arq. priv.)


Criança recebendo cuidados médicos numa enfermaria de pediatria do Hospital de São José em 1922
(arq. priv.)



Hospital de São José, antigo Convento e Colégio de Santo Antão-o-Novo em 1939,
 foto Eduardo Portugal (arq. AML)



Entrada para as consultas do Hospital de São José, antigo Convento e Colégio de Santo Antão-o-Novo em 1939,
 foto Eduardo Portugal (arq. AML)




     Painel de azulejos do séc. XVIII no interior do Hospital de São José na actualidade (foto João De Sousa Garcia)

                        
     Escadaria e lampadários no interior do Hospital de São José na actualidade (foto João De Sousa Garcia)

                        
                                    Porta da capela do Hospital de São José na actualidade (foto João De Sousa Garcia)
 
 
Escadaria e azulejos no Hospital de São José na actualidade (arq. priv.)
 
 
    Sala de tratamentos do Hospital de São José na actualidade onde se conjuga o passado com o presente 
                                                                                               (arq. priv.)
 

                                               Aspecto dos serviços no Hospital de São José na actualidade (foto LUSA)
 
 
                                                Moderno bloco operatório e equipa durante uma cirurgia (arq. priv.)
 

    Moderno aparelho de Tomografia Axial Computorizada (TAC) e equipamento de apoio (arq. priv.)
 

Pórtico da entrada sul do Hospital São José na actualidade (arq. priv.)
                            

                                Edifício do Hospital de São José junto ás imagens dos apóstolos no na actualidade
                                                                                                            (arq. pess.)


   Entrada do Hospital de São José junto ás estátuas dos apóstolos na actualidade
 (foto Ronaldo Marques de Carvalho)
 
 
                                                    Aspecto do edifício principal do Hospital de São José na actualidade (arq. pess.)
 

                                                               Hospital de São José visto do Largo do Martin Moniz (arq. priv.)


 



 
Texto:
Paulo Nogueira




Fontes e bibliografia:
SANTOS, Sebastião da Costa - O Arquivo do Hospital de S. José. In: Anais das Bibliotecas e Arquivos, (1920)
LEMOS, Maximiano de, História da Medicina em Portugal, Publicações Dom Quixote/Ordem dos Médicos,
Lisboa, 1991
GRAÇA, Luís, O Hospital Real de Todos os Santos. Textos sobre saúde e trabalho. Lisboa: s/e, 2000
Hospital de São José, site Min. da Saúde




11 comentários:

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    1. Muito obrigado pelo comentário e apreciação deste trabalho. Sempre bem vindo.

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  2. Muito obrigada pela excelente exposição trabalhei 10 anos como médica neste hospital fiz centenas de bancos e não fazia ideia da origem do seu nome , mas senti sempre o peso da história a sala da esfera onde fiz o exame de saída da especialidade é fascinante....

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    1. Agradeço o seu comentário e apreciação a este trabalho. Por vezes esse fenómeno de descobrir que o local em que trabalhamos ou a que estamos ligados de alguma forma no nosso dia a dia está cheio de histórias e história, umas mais conhecidas outras ainda ocultas, mas como diz e bem, "sente-se o peso da da história". Mais fascinante é quando descobrimos ou lemos algo sobre a história desse mesmo local como é o caso apresentado.

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  3. Boa noite, li com interesse o seu trabalho desejando encontrar a lista dos provedores e vedores do hospital em 1682. Será que existe? Já tentei a Torre do Tombo mas nada consegui. Como fez concerteza pesquisa para publicar este seu interessante trabalho talvez me possa dar uma pista onde procurar a dita relação.

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    1. Agradeço o seu comentário e interesse pelo tema. De facto para a elaboração deste artigo, na pesquisa feita, foram encontrados muitos detalhes de interesse para o mesmo e alguns nomes que estiveram ligados a esta instituição de saúde. Até ao momento, não foram encontradas ainda muitas referências à questão que propõe, no entanto se futuramente surgir alguma referência será acrescentado ao artigo em futuras actualizações do mesmo.

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  4. Que excelente artigo, muitos parabéns.

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