sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

UM PORTUGAL ESQUECIDO...


   Alentejo



"A distribuição de direitos da terra relaciona-se com a distribuição de poder, de rendimento, estatuto social e incentivos. Uma reforma agrária que muda esta distribuição é por definição uma mudança que afecta as raízes e não os ramos da sociedade."
Raup (1975)

Começamos por tentar mostrar através de factos reais, a partir de testemunhos, o que era a vida dos trabalhadores na região do Alentejo antes da designada Reforma Agrária, marcada a partir de 1975 em Portugal depois do golpe de estado do 25 de abril de 1974. Este tema não é um tema ainda hoje fácil de encarar por muita gente, pois a Reforma Agrária em Portugal não teve os efeitos desejados e até mesmo visíveis como podemos observar pela definição acima citada de Raup (1975).
 

    Paisagem alentejana por Dórdio Gomes (col. priv.)
 
 
    Postal ilustrado alusivo à apanha da azeitona como no Alentejo, no início do século XX (col. pess.)




Inicio de dia no Alentejo antes da Reforma Agrária

Aqui ficam de forma ainda que resumida, algumas memórias de um Portugal esquecido. Assim e até antes da Reforma Agrária, no Alentejo "enrregava-se" (entrava-se ao trabalho), ao nascer do sol mais frequentemente, tirando algumas excepções em que o nascer do dia representava o "largar" do trabalho. Geralmente ia-se a pé para o trabalho, em certos casos vinham tractores com reboques onde cada um levava cerca de 40 pessoas. Levavam uma "alcofa" com a comida para o almoço e uma panela de barro onde o aqueciam numa fogueira conjunta. Tinham uma hora de almoço, onde havia muita alegria, comia-se, cantava-se à "desgarrada", as mulheres mais velhas faziam renda, jogos como o da pedrinha, enquanto os homens iam aos pássaros com as suas fisgas. Os trabalhadores por hábito juntavam-se em grupos, tendo cada mulher uma amiga mais chegada, chamada a amiga da "panela". De seguida iam trabalhar até ao sol posto, depois iam para casa preparar as coisas para o dia seguinte e fazer a "lida" da casa.

Cada época do ano requeria culturas diferentes:
No verão tratava-se da cultura do arroz, trigo e mais tarde a do tomate; no inverno tratava-se da azeitona e da "desmoita" (tratar dos campos). Chegavam ao trabalho com a roupa já molhada começando a fazer dos sacos dos adubos capas para não se molharem.


No verão vinham grupos de mulheres do Algarve, chamadas de "as algarvias", para ajudar nas mondas do arroz. No inverno chegavam os grupos de mulheres do Norte, "as galegas" (mulheres que vinham do norte do pais), para trabalhar na azeitona e na desmoita. Estes grupos vindos de todo o país ficavam hospedados em montes e casões, chegando a casar com pessoas das terras para onde iam. Ao fim-de-semana, muitas pessoas iam trabalhar para os "cieiros" (pequenos proprietários), onde os trabalhadores poderiam impor as suas condições, tendo os "cieiros" menos possibilidades, acabavam por pagar um ordenado mais elevado do que os patrões da semana. As filhas dos "cieiros" trabalhavam na altura do verão que era quando o ordenado era maior. No verão durante doze semanas ganhava-se vinte escudos (0,10€), no inverno ganhava-se oito escudos (0,04€). Na cultura do trigo era mais comum encontrar-se as mulheres e o seu "capataz". Na época da azeitona era quando homens e mulheres trabalhavam juntos e se iniciavam a maioria dos namoros, fazendo os homens versos do cimo das oliveiras para as suas amadas. Havia uma distinção entre homens e mulheres, de onde os homens saiam favorecidos, visto que ficavam com o trabalho mais pesado. Os ordenados eram diferenciados; os rapazes só quando iam para a tropa é que começavam a ganhar o ordenado como um homem, já as mulheres tinham que encher um barril de água e conseguir transporta-lo à cabeça para começarem a ganhar o ordenado.



As festas

Era muito comum haver festas e bailes, todos os fim-de-semana havia bailes com as "algarvias". Depois de uma época de trabalho terminar os patrões ofereciam as "adiafas" (festas com comida e bebida). Em alturas de festas na aldeia, era chegar do trabalho, ir para o baile, depois do baile era trocar de vestimenta para ir lavar a roupa da semana a uma ribeira. Tempos difíceis e de trabalho árduo mas ainda assim com tempo para o convívio e tradições.


                                          Trabalhadoras no Alentejo chegando ao trabalho na década de 1950 (arq. priv.)



    Chegada dos trabalhadores numa herdade do Alentejo para mais um dia de trabalho já nos anos 70 (arq. priv.)




                                  Trabalhadores na monda do arroz no Alentejo no início dos anos 70 (col. pess.)


 Trabalhadores das limpezas das terras no Alentejo no inicio dos anos 70 (arq. priv.)
                   

Preparação do almoço no Alentejo após o trabalho no campo nos anos 70 (arq. priv.) 



Apanha de azeitona com toda a família em São Cristóvão, Montemor-o-Novo
no início dos anos 70 (arq. Rafael Direitinho)



                                        Monda do arroz em Alcácer do Sal , Alentejo no início dos anos 70 (arq. priv.)


Trabalhadores agrícolas no Alentejo em meados dos anos 60 na tradição
que se manteve até à Reforma Agrária (arq. priv.)



Traje típico de trabalhadora agrícola no início dos anos 70 (arq. priv.)



Trabalhadores num monte alentejano numa pausa de descanso durante o trabalho
em finais dos dos anos 60 (col. pess.)



 Casamento no Alentejo nos anos 60 (arq. priv.)



Família alentejana reunida nos finais dos anos 60 (arq. priv.)



Festa na após semana de trabalho numa herdade no Alentejo, início dos anos 70 (arq. priv.)



Grupo amador de teatro composto por os trabalhadores agrícolas do Alentejo no início dos anos 70 (arq. priv.)


Elementos de teatro amador composto por trabalhadores
agrícolas do Alentejo no início dos anos 70 (arq. priv.)



Fatos domingueiros e vestido de noiva usados no Alentejo ainda no início dos anos 70 (col. priv.)



Trajes típicos de trabalhadores agrícolas do Alentejo usados ainda no início dos anos 70 (col. priv.)




A agricultura depois da Reforma Agrária

Poderá parecer discutível, mas em alguns casos o povo português oprimido, depois de incitado e iludido por uma revolta desta natureza, como foi a do dia 25 de abril de 1974, no próprio dia da revolta e nos que se seguiram, quer em Lisboa quer em outras partes do país, como foi o caso do Alentejo, cometeu grandes exageros no que respeita à liberdade, tomando de assalto, de forma indevida, bens e propriedades de alguns privados.
Entre março e novembro de 1975 mais de 1 milhão de hectares de terras no Alentejo foram ocupadas e são formadas cerca de 500 propriedades colectivas dirigidas por trabalhadores rurais. Nasciam as famosas UCP's, (Unidades Colectivas de Produção). Este movimento da Reforma Agrária com apoios estatais, de sindicatos e partidos políticos, avança apoiando-se basicamente nos trabalhadores rurais eventuais, anteriormente mais desfavorecidos, o que leva, no contexto de mudança em que Portugal se encontrava, a novas condições político-económicas das populações do sul. Aumentam as áreas de cultivo, aumentando também a produção, de acordo com a lógica das UCP's o emprego com salários justos, para além do trabalho assegurado e da igualdade entre os trabalhadores: um acesso igual à terra e aos seus rendimentos para todos os que dela dependem. No entanto o futuro e a própria evolução política e económica do país revelou-se um pouco desajustada das intenções da Reforma Agrária, fazendo cair por vezes os seus objectivos principais. Os conflitos entre membros das UCP's, os seareiros e pequenos rendeiros são frequentes; são fracos ou mesmo nulos os conhecimentos de gestão agrária e financeira dos trabalhadores dessas unidades colectivas; há toda uma marginalização cada vez maior dos pequenos e médios proprietários não aderentes à Reforma Agrária, descontentes com a distribuição de desempregados pelas suas propriedades, aumentando-lhes os encargos, os trabalhadores especializados e mais qualificados das cooperativas de produção, devido à igualdade imposta no seu funcionamento acabam por se afastar. Todos estes factores desencadeiam uma deriva crescente das UCP's e o quebrar de relações sociais e laborais na população rural. As alterações políticas no final da década de 70 precipitam uma morte anunciada e o fim das UCP's, tal era o seu descrédito e falta de apoio político e de confiança popular. Com as dificuldades económicas, menor área de exploração e menos postos de trabalho, a maior parte das unidades entra em processo de falência. Com tudo isto o trabalho no campo acaba, as pessoas começaram a emigrar, começando os campos, montes e alfaias a ficar ao abandono. Apareceu a maquinaria, o que fez diminuir o número de trabalhadores nas terras que ainda foram sendo cultivadas, os trabalhadores que restaram puderam expor os seus direitos e as suas vontades, deixando de vir trabalhadores dos vários pontos do país e com isso, todo aquele convívio do passado começou a diminuir até aos dias de hoje. As antigas tradições e hábitos acabaram, mudando radicalmente a vida das populações do Alentejo, tudo passou a fazer parte de um Portugal esquecido. Ficam apenas as recordações dos mais velhos e a saudade daquele convívio quase familiar, mesmo em tempos difíceis.
Com o fim da Reforma Agrária e o latifúndio restaurado, traz ao Alentejo as terras abandonadas, a desertificação e o desemprego, enquanto umas poucas centenas de grandes agrários recebem milhões de euros sem que lhes seja exigida a produção seja do que for. Foi a realidade constatada. A Reforma Agrária acabou por ser destruída, mas não pôs fim à necessidade de nas actuais circunstâncias, se concretizar uma Reforma Agrária noutros moldes.



Cartazes alusivos à Reforma Agrária no Alentejo
(col. priv.)
 
 
                                                                           Filme que aborda o processo da Reforma Agrária no 
                                                                            Alentejo, durante o PREC, cooperativa Grupo Zero



                                            Manifestação de trabalhadores no Alentejo no início da Reforma Agrária (arq. priv.)



Populações no Alentejo numa forma de manifestação durante a Reforma Agrária (arq. priv.)



                                      Trabalhadoras agrícolas alentejanas no período da Reforma Agrária (arq. priv.)



                                                             Trabalhadores operando na debulhadora após o 25 de Abril de 1974
                                                                                   no período da Reforma Agrária (arq. priv.)



Transporte dos trabalhadores em tractor no Alentejo durante o período da Reforma Agrária (arq. priv.)
                        



     Apanha e transporte do tomate no Alentejo durante o período da Reforma Agrária (arq. priv.)



Trabalhadores rurais do Alentejo reivindicando direitos em 1975 no período da Reforma Agrária (arq. priv.)



                                        Pintura mural alusiva à Reforma Agrária no Alentejo em 1975 (arq. priv.)



 Ambiente de trabalho na UCP Soldado Luís no Alentejo em 1978 (arq. priv.)



Barragem do Pego do Altar no Alentejo, construída durante o Estado Novo (foto Rafael Direitinho)



Antiga cooperativa (UCP) de Campo Maior ao abandono nos dias de hoje (arq. priv.) 


    Máquina agrícola Tramagal ao abandono depois da Reforma Agrária (foto Alexandre Filipe Nobre)



                                                     Monte alentejano abandonado nos dias de hoje (arq. priv.)



Edifícios numa herdade na zona de Évora na actualidade (foto Rafael Direitinho)
                              


                                            Aspecto de campo de uma herdade no Alentejo nos dias de hoje (foto Rafael Direitinho)
                             


                           Aspecto de campo de uma herdade moderna no Alentejo nos dias de hoje (foto Rafael Direitinho)




Aspectos de modernas explorações agrícolas no Alentejo (arq. priv.)



Exploração agrícola com gado pastorício no Alentejo nos dias de hoje (foto Rafael Direitinho)



Pôr do sol numa exploração agrícola com gado pastorício no Alentejo nos dias de hoje (foto Rafael Direitinho)







Texto:
Rafael Direitinho e Paulo Nogueira

 
Fontes e bibliografia:
Raup, P. M. (1975), "Land reform issues in development", Staff Paper P75-27, Department of Agricultural and Applied Economics, University of Minnesotta, St. Paul.
Publicação on-line O Melhor Alentejo do Mundo
Documentários à Esquerda, 420Doc
Trabalho baseado em testemunhos recolhidos junto das populações de Santa Susana em Alcácer do Sal.





3 comentários:

  1. Olá, bom dia! Deparei-me com este artigo no seguimento de um trabalho jornalístico que estou a fazer sobre as mulheres que viveram na clandestinidade durante a ditadura (uma delas cresceu no Alentejo na década de 1950), e gostava muito de saber mais sobre algumas dessas fotografias. Sabe se seria possível utilizá-las num trabalho?

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  2. Agradeço o seu contacto no sentido do pedido de autorização para utilização de algumas fotos deste artigo. Para melhor informação contacte-me por favor via e-mail para:
    geral.pnp@gmail.com

    Muito obrigado

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  3. ESPETACULAR TODA ESTA DESCRIÇÃO

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