segunda-feira, 10 de novembro de 2025

QUINTAS E PALÁCIOS EM LISBOA E NOS SEUS ARREDORES

Durante os séculos XVII, XVIII e XIX vão surgindo grandes quintas nos arredores da cidade de Lisboa que eram constituídas, na sua maioria, por  uma propriedade com casa apalaçada de  dois pisos, salvo algumas excepções, piso térreo e superior, área de lazer, jardins, capela e equipamentos de apoio às actividades agrícolas como estrebarias, currais, campos de rega e poços. Eram na sua maioria casas de campo da elite da capital Lisboa onde se juntava o lazer ao rendimento. A cidade de Lisboa devido ao seu clima, luz, situação geográfica e sendo a capital de um vasto império colonial durante séculos, resultaram numa grande quantidade de palácios e quintas mandados construir por famílias nobres ao longo dos tempos.  É pois vasta a quantidade de quintas, palácios e palacetes na cidade de Lisboa e nos seus arredores, algumas destas propriedades já desaparecidas ou em vias de desaparecer, mas também alguns casos excelentes exemplos de restauro e reedificação. Umas sendo propriedades privadas ou do Estado, com mais ou menos importância que outras, mas todas elas integradas numa zona, num tempo e época com histórias para contar, influenciando de forma directa e indirecta a origem de certas localidades, assim como toponímias da capital. De todas essas propriedades, existentes, é aqui dado a conhecer alguns desses exemplos.


Quinta da Buraca ou do Bom Pastor

Situa-se esta propriedade na Estrada da Buraca, 8 A, no antigo lugar do Calhariz, na Freguesia de Benfica em Lisboa. A antiga Quinta da Buraca ou do Bom Pastor, data, segundo registos, do século XVII. Num registo do padre António Carvalho da Costa (1650 - 1715), assinala numa descrição sobre a freguesia de Benfica que: "duas casas, huas de hum casal, e outra de hua quinta de Antonio Brum, que chamão as Buracas"Embora a primeira referência à Quinta das Buracas, como era designada, remonte a 1712. Foi apenas na 2ª metade do século XVIII que se configurou o actual conjunto edificado, constituído por casa nobre, estruturas secundárias, jardim de buxo e casa de fresco. O edifício central situa-se à face da Estrada da Buraca, desenvolvendo-se em dois pisos. É secundado por um corpo longitudinal secundário, formando, com o edifício do lagar, o pátio central de entrada. A sul situa-se o pátio de serviço, rebaixado em relação ao caminho de ligação com a quinta. A nascente do edifício nobre estende-se o jardim de buxo, decorado com fonte e pórtico "embrechados", e a parte da quinta que permanece com carácter agrícola, pontuada pela casa de fresco  com as suas belas pinturas do tecto de efeito de perspectiva. Dedicada ao cultivo de trigo e produção vinícola, é nos registos da Décima da Cidade que encontramos a mais completa descrição com "Patio, Cazas Nobres, vinha, e terras de semeadura, com hum Moynho de vento, e seis courelas de terra que tudo faz por sua conta, onde asiste, que custuma produzir de anno comum". Em registos de 1756, a propriedade pertencia a Pedro Caetano Brum Pimentel, que aí residia com a sua mulher, Mariana Catarina de Pastori e com os seus 22 criados. Segundo registo do Livro das Almas, no ano de 1764, a propriedade possuindo 14 criados e uma escrava negra, um caseiro e um cocheiro, bem como, para o trabalho agrícola, de um carreiro, um moleiro e um moço de quinta, dando ainda abrigo a um pobre. Desde logo, assegurando o funcionamento do oratório particular da casa, remonta a 1774, o breve pontifício para poder "mandar celebrar o Santo Sacrificio da Missa no Oratorio das Cazas de Sua habitação". Proveniente desse espaço, sobrevive ainda o retábulo da época, vestígio raro do património móvel da quinta neste período, que importa preservar. Nos séculos que se seguiram, uma sucessão de proprietários contribuiu para a consolidação do conjunto habitacional da propriedade, destacando-se Bernardo António da Silva, em cujo tempo foram executados os três grandes painéis monocromos da Real Fábrica do Rato (c. 1780), a escadaria trompe l’oeil e a pintura do tecto da casa de fresco. 


Aspecto do frontão do palacete da Quinta do Bom Pastor na actualidade (foto Paulo Nogueira)


Detalhe da planta topográfica de 1908, com a propriedade 
da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor (arq. AML)


Frontão do palacete da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
em meados dos anos 40 do séc. XX (arq. priv.)


Casa de fresco e fonte do palacete da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
em meados dos anos 40 do séc. XX (arq. priv.)


Aspecto da pintura com efeito de perspectiva no tecto da casa de fresco 
da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor, na actualidade (arq. priv.)




Painéis de azulejos do séc. XVIII da Real Fábrica do Rato na Quinta da Buraca ou do Bom Pastor, 
em 1960, foto João Miguel dos Santos (arq. AML)


Detalhe do jardim no interior da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
em meados dos anos 60 do séc. XX (arq. priv.)


Interior da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor em meados dos anos 60 do séc. XX (arq. priv.)



Frontão do palacete da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
em meados dos anos 60 do séc. XX (arq. priv.)


Desenhos dos alçados Nascente e Poente do palácio da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor (arq. priv.)


A quinta teve vários nomes, devendo o seu nome actual de "Bom Pastor" ao seu proprietário João António Lopes Pastor (1780 - 1850), senhorio da Quinta da Buraca a partir de 1817 a ele se devem algumas adaptações no edifício e as várias intervenções novecentistas ainda hoje conservadas. Conhecido na região por ser um homem íntegro e solidário, ligado à cultura, negociante de sedas do século XIX, proprietário de uma fábrica de tecidos. Grande amigo de Almeida Garrett (1799 - 1854), que chegou a passar temporadas nesta quinta. De relembrar que Benfica e o lugar da Buraca, eram uma região de campo, com belas paisagens, ideal para descanso e lazer. São várias as notícias das temporadas passadas nesta quinta, repetidamente citadas pelo próprio escritor nas suas Prosas, não deixa de evocar a casa do "Pastor", os "fructinhos", os "chuchus e as limas que vieram da Buraca". Outras figuras da história passaram por esta propriedade, por volta de 1852, como a infanta D. Maria Amélia de Bragança (1831 - 1853), filha do rei D. Pedro IV (1798 - 1834), na companhia de sua mãe a imperatriz D. Amélia. Em 1834, por despacho, a Direcção das Águas Livres autorizou a Quinta de João António Lopes Pastor a utilizar as águas sobrantes do chafariz da Buraca. De recordar que parte do Aqueduto das Águas Livras faz paredes meias com esta propriedade e o chafariz de espaldar, ostentando uma tabela com a pedra de armas reais de D. José I, existente no cruzamento da Estrada da Buraca, que data de 1771. Entre outras funções, este chafariz destinava-se também a abastecer a comitiva real nas deslocações que fazia então ao Palácio de Queluz, quando por ali passavam. Nos registos esta propriedade em 1873, tinha a designação de Quinta do Macaísta, sendo o seu proprietário José Maria Pastori. 


Almeida Garrett (1799 - 1854), que frequentou a Quinta da Buraca 
em meados do séc. XIX (arq. pess.)

D. Maria Amélia de Bragança (1831 - 1853), que frequentou 
a Quinta da Buraca em meados dos séc. XIX
(arq. pess.)


Respiradores do Aqueduto das Águas Livres, paredes meias com a Quinta do Bom Pastor 
na actualidade (foto Paulo Nogueira)


Chafariz da Buraca, paredes meias com a Quinta da Buraca ou do Bom Pastor, 
em 1939, foto Eduardo Portugal (arq. AML)


Chafariz da Buraca, paredes meias com a Quinta da Buraca ou do Bom Pastor, 
na actualidade (foto Paulo Nogueira)



Com a construção da Linha de caminho de ferro de Sintra, que passa junto à propriedade e inaugurada em 1887, toda a área circundante à quinta desenvolveu um maior aglomerado habitacional e o ambiente campestre, bucólico de outros tempos foi gradualmente mudando. O núcleo urbano da região foi evoluindo e aumentando, trazendo novos habitantes. Ao longo do século XX, esta propriedade conheceu diversos donos, entre eles a viúva Gordon e o marquês de Fontes. António Maria de Fontes Pereira de Melo Ganhado (1886 - 1969), 3º Marquês, Engenheiro dos Caminhos de Ferro, mecenas e administrador do Jardim Zoológico de Lisboa, adopta a Quinta do Bom Pastor para sua residência de Verão. Foi responsável por alguns melhoramentos estruturais e manutenção da propriedade em 1923. Na década de 1940, este último proprietário pondera a venda da quinta para fins industriais, mas é em 1954 que vende a propriedade com 29.200 metros quadrados à Câmara Municipal de Lisboa, que por seu turno, a cedeu ao Patriarcado de Lisboa. No ano de 1962, o Patriarcado mandou restaurar o palácio e recuperar o jardim e hortas, tendo sido nessa altura construída na quinta uma casa de retiro a que foi dado o nome de Casa de Retiro do Bom Pastor, inaugurada em 1964. O palacete da quinta por essa altura, converte-se em residência do Cardeal D. Manuel Cerejeira (1888 - 1977), até à sua morte, em 1977. Igualmente o antigo líder António de Oliveira Salazar (1889 - 1970), após a queda sofrida em 1968, passou os seus últimos dias, antes da sua morte no palacete desta propriedade. Tratando-se de um conjunto que teve intervenções ao longo de vários séculos, importou recentemente nas últimas obras de restauro, primeiramente identificar quais os valores a preservar, desde elementos originais do edifício como cantarias e balaustradas em pedra e gradeamentos em ferro, mas também uma sucessão de intervenções decorativas, como os painéis de azulejos decorativos (interiores e exteriores), a fachada de azulejos relevados voltada para o jardim de buxo, os "embrechados" e os frescos no tecto do pavilhão/casa de fresco, edifício este convertido numa pequena capela, mas mantendo as suas características arquitectónicas originais. De forma a manter a integridade dos elementos decorativos procurou-se uma reintegração recorrendo, o mais possível, a materiais idênticos aos existentes, um excelente trabalho de restauro exemplar. A Quinta do Bom Pastor, com dois edifícios: o palacete, onde passam a funcionar os serviços da Conferência Episcopal, e as casas de construção recente, que serviam para cursos e retiros que, após obras de requalificação e a necessária adaptação, foram transformadas nas instalações da Rádio Renascença. Em maio de 2016, passaram a estar instaladas nos espaços anexos desta propriedade as rádios do Grupo Renascença Multimédia, Rádio Renascença, RFM, Mega HITS, Rádio SIM, a promotora Genius Y Meios e Intervoz. A bênção das novas instalações foi feita por D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Foi desta forma, realizado um trabalho de restauro exemplar ao palacete e jardins envolventes, dando uma nova vida ao espaço desta propriedade do século XVIII. A Quinta do Bom Pastor foi reconhecida em 1994, com a classificação de Imóvel de Interesse no Inventário Municipal do Património da Câmara Municipal de Lisboa, e destacada em 2002 no Plano de Pormenor do Calhariz, fazendo parte do percurso pedonal do roteiro histórico cultural de Benfica.



Planta topográfica de 1908 da região onde se situa a Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
com a Linha de Sintra e núcleos habitacionais (arq. AML)


Palacete da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor na Estrada da Buraca em 2010 
(arq. Fausto Castelhano)


Cardeal D. Manuel Cerejeira (1888 - 1977), 
residente na Quinta da Buraca 
ou do Bom Pastor, desde 1964 
(arq. priv.)

António de Oliveira Salazar (1889 - 1970),
falecido na Quinta da Buraca 
ou do Bom Pastor em 1970
(arq. priv.)

Planta geral da Quinta do Bom Pastor na actualidade (arq. priv.)

Fachada do palacete da Quinta do Bom Pastor durante as obras de recuperação de todo o complexo 
(arq. priv.)


Frontão do palacete da Quinta do Bom Pastor, após as obras de restauro (arq. priv.)



Um dos painéis de azulejos do séc. XVIII restaurados do interior do palacete da Quinta do Bom Pastor 
(arq. priv.)


Páteo interior do palacete da Quinta do Bom Pastor, na actualidade (foto João Ferrando)


Escadaria interior de acesso ao páteo do palacete 
da Quinta do Bom Pastor após restauro 
na actualidade (foto Paulo Nogueira)



Aspectos exterior e interior da casa de fresco, convertida em pequena capela e fonte 
na Quinta na actualidade (fotos Nuno Valentim)


Pormenores das pinturas no tecto da casa de fresco da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor 
(arq. priv.)

Aspecto do interior do espaço da Quinta da Buraca ou do Bom Pastor na actualidade 
(foto Nuno Valentim)



Parte do palacete da Quinta do Bom Pastor onde funcionam os serviços
 da Conferência Episcopal (foto: João Ferrand)


Aspecto das novas instalações da Rádio Renascença Multimédia na Quinta do Bom Pastor 
na actualidade (foto Paulo Nogueira)

Aspecto da entrada das instalações da Rádio Renascença Multimédia na Quinta do Bom Pastor 
na actualidade (foto Paulo Nogueira)

Aspecto geral do frontão do Palacete da Quinta do Bom Pastor ou da Buraca 
após o restauro na actualidade (foto Paulo Nogueira)


Placa informativa com percurso pedonal 
do roteiro histórico cultural de Benfica,
 junto à Quinta do Bom Pastor
(foto Paulo Nogueira)

Complexo que engloba a Quinta do Bom Pastor na actualidade visto pelo Googlemaps




Texto: 

Paulo Nogueira


Fontes e Bibliografia:

PROENÇA, Padre Álvaro, Benfica através dos tempos, Lisboa, edição Ulmeiro, 1954

STOOP, Anne de, Quintas e Palácios nos Arredores de Lisboa, Lisboa, Civilização, 1986

CALDAS, João Vieira, A Casa Rural nos Arredores de Lisboa no Século XVIII, Lisboa, 1987 


quinta-feira, 3 de julho de 2025

ANTÓNIA CUSTÓDIA DAS NEVES

Do mistério, ao amor e à tragédia... 



Nascida por volta de 1851, Maria Trindade ou Antónia das Neves, era natural de Quintela da Lapa (Sernancelhe), foi criada com mais 9 irmãos como rapaz na aldeia de Granja do Tedo, em Tabuaço, onde sua mãe, Maria das Neves ou "Maria Coroada", uma figura singular que, décadas antes, fundara uma seita religiosa conhecida como "o sisma da Granja do Tedo", na sua terra natal. Seita esta que em meados do século XIX deu muitas preocupações às autoridades da região. Mistério ou não, Antónia na sua juventude começou a usar roupas masculinas e continuou a usá-las por alguns anos. Vestiu-se como rapaz e adoptou o nome de António das Neves, estatuto que manteve, na escola e no trabalho à jorna pelo Douro. Durante o tempo em que viveu como homem, Antónia, trajava-se com estilo e cuidado da época, usava jaquetão de ratina, chapéu baixo de feltro, calças de casimira, camisa com folhos e botões de ouro. No colete, exibia uma corrente dourada e levava sempre consigo um relógio de bolso. Era descrita como elegante, simpática e com bastante sucesso entre as jovens da sua idade. Uma delas chegou mesmo a escrever-lhe:

"Quando fores minha esposa; / serás feliz, venturosa. / Terás tudo quanto possuo / minha bela, minha rosa…" . 

Após a maioridade e em busca de uma vida melhor, Antónia, ou António como se assumia, mudou-se para a cidade do Porto e conseguiu trabalho como caixeiro de balcão numa taberna em Vila Nova de Gaia e mais tarde na cidade do Porto. Levava uma vida feliz, com o seu emprega na cidade grande na sua falsa identidade masculina de António das Neves.


Aldeia da Granja do Tedo na actualidade onde Antónia Custódia das Neves foi criada (arq. priv.)

Ponte romana na aldeia da Granja do Tedo na actualidade onde Antónia Custódia das Neves foi criada 
(arq. priv.)


Casa onde Antónia Custódia das Neves terá sido criado por sua mãe Maria das Neves ou "Maria Coroada"
 com os seus 9 irmãos na aldeia de Granja do Tedo na actualidade (arq. priv.)


Estilo de vestir da época que Antónia Custódia das Neves 
trajava na sua identidade masculina 
de António das Neves 
(arq. pess.)



Na primavera de 1871, uma simples ida à taberna na Rua do Bonjardim revelou uma história que viria a agitar toda a cidade do Porto. José Ribeiro dos Santos, chefe da 1.ª esquadra da polícia, dirigiu-se ao estabelecimento de António Joaquim da Silva, onde foi atendido por um jovem educado e de aparência marcante, que se apresentava como António Custódio das Neves. No entanto, algo no aspecto delicado e nas formas do "moço" chamou a atenção do experiente agente… Movido pela desconfiança, o polícia questionou-o sobre o serviço militar e acabou por levá-lo para a esquadra da Rua de Cima do Muro da Ribeira. Não resistindo à pressão do interrogatório sofrido, "o jovem" fez uma revelação surpreendente: era, na verdade, uma mulher de 20 anos chamada Maria Trindade, embora fosse conhecida como Antónia Custódia das Neves, natural da Granja do Tedo, no concelho de Tabuaço. Após a confissão, foi detida e entregue ao comissário, que de imediato a encaminhou para o tribunal. O juiz ordenou-lhe para passar a usar as roupas próprias ao seu sexo. Não é totalmente claro se fazer o contrário era contra as leis da época, mas pelo menos parecia ofender a ideologia do seu tempo, e ela passou a fazê-lo, apesar da fama que as vestimentas masculinas lhe tinham trazido. A notícia da "mulher disfarçada de homem" espalhou-se rapidamente e, no dia seguinte, dominava as manchetes dos jornais do Porto da época. 

O Jornal do Porto escreveu: "É o assunto forçado de todas as conversações e não há ninguém nesta cidade que deixe de fazer os comentários mais extravagantes." 

Já o jornal A Voz do Povo optou por um tom mais humorístico, publicando até uma quadra popular: "Oh! Salve, Antónia Custódia! / Ó grande celebridade! / És pérola de virtude / Nesta perdida cidade…" 

No tribunal de São João Novo, António ou Antónia confirmou tudo o que dissera à polícia no interrogatório. Após ser examinada por médicos, foi libertada. À saída, uma multidão a esperava com entusiasmo, tratando-a como uma autêntica heroína pela coragem que demonstrou ter. Foi um acto de muita coragem uma mulher numa época de tantos preconceitos e regras rígidas ter tido esta atitude perante a sociedade de então. Mistério ou não, há quem apoie a teoria de que Antónia Custódia das Neves, vestia-se de homem, para ter oportunidades de trabalho. Na altura as mulheres não tinham as mesmas oportunidades que os homens e famílias que só tivessem mulheres como filhas, usavam por vezes esta estratégia. Recorde-se que este caso não foi único na história.


Ambiente de taberna idêntica à onde António das Neves trabalhou na cidade do Porto 
como caixeiro de balcão (arq. pess.)


Tribunal de São João Novo no Porto em meados do séc. XIX, 
onde decorreu o processo de Antónia Custódia das Neves 
no ano de 1871 (arq. pess.)



As duas primeiras  fases da vida de Antónia Custódia das Neves 
em ilustração da revista Pontos nos  ii's em 1888 
(arq. pess.)



No entanto, oito anos depois desta ocorrência, em abril de 1879, Antónia casou-se na igreja de Santo Ildefonso com António Joaquim da Silva Júnior, de apenas 19 anos, por quem se apaixonou, filho do dono da taberna onde começara toda esta história. O casal viveu feliz... e por algum tempo toda a história passada foi quase esquecida. Apesar de nesse mesmo ano de 1879, ser editada uma obra hoje rara, de título Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo, com autores sob a forma de pseudónimos (i.e. Patrício Lusitano e Pantaleão Froilaz), que embora dedicado à mãe de Antónia, não deixa de relembrar e referir a filha e toda a façanha da dupla identidade e vida que levou. Mas agora como Antónia Custódia das Neves e Silva, era apaixonada pelo rapaz com que se casou, mesmo sem filhos e descendência, levavam uma vida pacata de classe média da cidade do Porto. O único registo fotográfico conhecido de Antónia será deste período, ostentando um trage típico domingueiro. A tragédia na vida deste jovem casal chegou no dia 20 de março de 1888, 9 anos após o enlace e de uma vida feliz.  Antónia e o marido estavam a assistir a um espectáculo integrado na festa de benefício do actor Firmino Rosa, no prestigiado Teatro Baquet, na Rua de Santo António, (actual Rua 31 de Janeiro), quando um incêndio brutal deflagrou no palco e consumiu em poucas horas todo o interior do teatro, incêndio este provocado por um bico de iluminação a gás de uma gambiarra. Da programação extensa incluía nesse dia a ópera cómica "Dragões de Vilares" e a zarzuela "Grã via". Consta que o casal morreu ali, carbonizado, juntamente com mais de 120 pessoas nunca identificadas. Foi uma das maiores tragédias ocorridas na cidade do Porto. A morte de Antónia Custódia no fatídico incêndio comoveu o país, algumas publicações da época voltaram a relembrar esta figura carismática e até os poetas populares lhe prestaram homenagem. Um deles escreveu: "Era um rapaz às direitas; / a Maria da Trindade / Todas as moças bem feitas, / inda a choram com saudade…"  Antónia Custódia das Neves foi uma mulher à frente do seu tempo pela coragem, livre e determinada nas suas atitudes perante a sociedade do seu tempo. Viveu como quis e morreu ao lado do amor da sua vida. Por tudo isso, foi uma figura carismática portuguesa que merece ser lembrada.



Igreja St.º Ildefonso na cidade do Porto, onde Antónia das Neves casou em 1879, 
com António Joaquim da Silva Júnior, foto, Guedes (col. pess.)


Página do livro Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo
 com referencia à filha, Antónia Custódia das Neves em 1879 
(arq. priv.)


Aspecto da cidade do Porto onde o casal vivia feliz em meados dos anos 80 do séc. XIX 
na Rua do Carmo junto à Praça Gomes Teixeira (arq. priv.)


Único registo fotográfico de Antónia Custódia das Neves e Silva 
com tráge típico domingueiro (arq. priv.)



Fachada do Teatro Baquet do Porto onde Antónia Custódia das Neves e Silva e
 António Joaquim da Silva Júnior iam assistir a um espectáculo
 in Diário Illustrado de 1888 (arq. pess.)



Ilustração do fatídico incêndio do Teatro Baquet do Porto 
em 20 de março de 1888, onde o casal perdeu a vida,
 in Diario Illustrado de 1888 (arq. pess.)

Aspectos da tragédia do incêndio no Teatro Baquet no Porto onde perderam a vida 
Antónia Custódia das Neves e Silva e o marido em 1888,
 ilustração da revista Pontos nos ii's (arq. priv.)


As três fases da vida de Antónia Custódia das Neves e Silva 
em ilustração da revista Pontos nos  ii's em 1888
(arq. pess.)




Texto: 

Paulo Nogueira


Fontes e bibliografias:

LUSITANO, Patrício e FROILAZ, Pantaleão, Maria Coroada ou o Scisma da Granja do TedoVerdadeira História da Mulher Homem ou Antonio Custodio das Neves ou Antonia Custodia das Neves, Typographia de Manoel José Pereira, Porto, 1879

Diário Illustrado de 22 de março de 1888, Impr. de Souza Neves, Lisboa

Revista Pontos nos ii's de 5 de abril de 1888, Lytographia Guedes, Oficina de Justino Roque Gameiro Guedes, Rua da Oliveira, ao Carmo, 12, Lisboa,1888