Os verões dos lisboetas...
Segundo registos, no território português, a "vilegiatura balnear marítima" ou temporada de praia, começa a ser praticada a partir do final do século XVIII pela princesa e rainha consorte Carlota Joaquina (1775 - 1830), em Caxias, e alguns anos mais tarde, em 1807, seguindo a tradição, pelo Marquês de Belas e seu sobrinho o 7.º Marquês de Fronteira, em Pedrouços e Algés onde possuía o seu palácio de praia. No entanto, desde meados do século XVIII que, em Inglaterra, se popularizaram os banhos de mar, ou de rio, como tratamento para males de pele, respiratórios, digestivos ou "nervosos". As classes mais abastadas (e arrojadas) foram fazendo o tratamento marítimo junto à costa, isto até ao início do último quartel do século XIX, em que se popularizaram e mais tarde democratizaram "os banhos". Para o comum dos banhistas em Portugal, nomeadamente na cidade de Lisboa, era possível, logo nos primeiros anos do século XIX, usufruir dos banhos de "tratamento marítimo" no rio Tejo, protegido dos olhares indiscretos, no interior das famosas Barcas de Banhos criadas então para o efeito. A este tipo de local para banhos públicos, encontra-se referência à existência, já em 1761, de uma destas Barcas de Banhos, ancorada no rio Sena, junto à Pont-Royal, em Paris explorada pelo senhor Poitevin. Para além dos Bateaux à Bains, como eram designados, com a modalidade do banho quente e frio, são também conhecidos os Bateaux-Lavoirs, lavadouros flutuantes compostos, por regra, de um espaço para lavagem da roupa, ao nível da água, e de outro para secagem, num segundo piso. Eram estes banhos desfrutados nas Barcas de Banhos, considerados terapêuticos em águas correntes do rio Tejo, águas estas que se renovavam sob o influxo das marés. As Barcas de Banhos menores tinham a forma de uma pequena casa de madeira, construídas sobre enormes faluas, para as quais se entrava por meio de um pontão que vinha da embarcação para o cais, onde se vendiam os bilhetes e alugavam os lençóis, fatos de banho e as bóias, porque quem sabia nadar tinha autorização para se banhar fora das gaiolas reservadas aos banhistas, em volta da construção. À ré da embarcação, encontrava-se o "banho geral", onde os utentes se agarravam a uma corda, que um marítimo experiente vigiava, banho este que se pagava com um pataco. Existem referências de que em 1811, eram três as barcas disponíveis junto à Praça do Comércio, nos anos seguintes mais ainda se popularizaram, mercê de diversos tratados de higienistas que louvavam tão são tratamento. Na publicação inglesa "Sketches of Portuguese Life" de 1826, é representado em gravura aguarelada, um pequeno bote catraio de apoio às barcas, munido com toldo ou barraca de banhos que os banhistas lisboetas utilizavam para os seus banhos terapêuticos fluviais no rio Tejo. Serviam igualmente estas pequenas embarcações para quem quisesse tomar banho no meio do rio. As barracas em lona destes pequenos botes tinham a forma de uma caixa paralelepipédica, que se armava à popa do bote e eram constituídas por uma armação de 4 prumos e 4 travessas de madeira, que se revestiam com um toldo de lona, cujas arestas verticais e os bordos inferiores se prendiam com atilhos de nastro ou cordas, de forma a ficar complemente impenetrável à vista o interior da barraca o que garantia uma maior privacidade. Refira-se que é um dos mais antigos registos conhecidos em imagem, deste tipo de embarcação e actividade que nelas se praticava. Em outros registos mais tarde surgem na paisagem ribeirinha estes pequenos botes catraios nomeadamente frente à Praça do Comercio, como num estudo de leque em papel, edição Casa Verissimos Amigos de 1840.
Não existe uma data ou uma referência concretas de quando este tipo de barca surgiu no rio Tejo, no entanto há notícias de que em 1835 existiam outras Barcas de Banhos com os nomes: "Barca Grande", "Barca dos Tonéis" e "Barca do Hiate". Muito provavelmente terão dado origem às três mais famosas Barcas de Banhos do Tejo. Assim, em 1848 havia três Barcas de Banhos do Tejo famosas, como ficou registado no curioso desenho litográfico colorido para papel de leque editado pela Casa Verissimos Amigos com um aspecto da Praça do Comércio. Essas 3 barcas, consta que se chamavam "Flor do Tejo", "Diligência" e a mais famosa a "Deusa dos Mares". Mal se entrava no Verão encontravam-se atracadas no rio as célebres Barcas de Banhos, mais precisamente, no Cais de Santos, na margem do rio Tejo, pouco mais ou menos onde hoje fica a estação ferroviária da Linha de Cascais. Assim que o calor se tornava insuportável em Lisboa, o alfacinha acorria às Barcas de Banhos no Tejo para se refrescar. Efectivamente os lisboetas não eram muito dados a idas à praia, porque os transportes eram caros e escassos e quanto muito ia-se até Belém, Pedrouços ou Algés apanhar o ar marítimo e dar passeios à beira rio. Equivaleriam hoje as Barcas de Banhos às nossas actuais praias. Os banhos de mar tomavam-se apenas como tratamento prescrito pelos médicos e era na zona da Fundição ou na Praia de Santos que de manhã se ia mergulhar na lama ou na água suja de toda a imundície que naqueles locais eram despejadas. Também mais a norte do rio Tejo, por entre quintas e terrenos de cultivo, existiam as praias de Xabregas com extensos areais, como a da "Marabana", que tinham o seu público habitual. Com as epidemias que assolaram Portugal, nomeadamente a cidade de Lisboa em 1856, a cholera morbus em 1857 e o outro flagelo, que se tornou ainda mais devastador, a febre-amarela, este negócio das Barcas de Banhos sofreu uma quebra mas por outro lado era a solução para evitar os locais imundos da beira rio para banhos e ter alguma higiene. Assim, para além das barcas já existentes, as famosas barcas com os pomposos nomes de "Deusa dos Mares" e "Flor do Tejo", apareceram mais tarde, as "Flor da Praia" e "Flor de Lisboa", entre outras. Como essas barcas estavam amarradas à terra, ou ancoradas muito próximo, as águas eram iguais e ainda por cima o banho tomava-se dentro de verdadeiras gaiolas; mas, por muito tempo, foi moda "ir às barcas" que além do mais serviam para o cultivo do namoro e de encontros furtivos combinados ou não. Três dessas barcas, encontravam-se atracadas perto uma das outras, sendo a primeira, a contar do Cais de Sodré para a Praça do Comércio, a "Lisbonense", pintada de negro com vivos brancos; seguindo-se a "Vinte e Quatro de Julho" pintada de azul e a terceira, a "Feliz Destino", toda de verde. A primeira era frequentada por gente do povo, a outra pelos remediados e a terceira pelos de mais posses. As empresas que exploravam estas Barcas de Banhos tinham ao seu serviço pequenos botes catraios, munidos com um toldo ou uma barraca de lona, que iam buscar e levar os respectivos fregueses ao embarcadouro da Praça do Comércio, junto às escadas do cais do canto sudeste da então estação dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste. Num registo de 1870, por T. W. Langton é possível ver uma dessas barcas frente ao Terreiro do Paço. Igualmente junto ao Cais das Colunas e no Cais do Sodré, concentravam-se os estabelecimentos de exploração destas Barcas de Banho com funcionários, barqueiros, figuras que também elas se tornaram típicas de Lisboa, que animavam a vida ribeirinha com os seus pregões:
"Quem quer tomar banho?
Quem se quer refrescar?
Quem vai à Barca?"
Em 1865 os preços dos bilhetes dos banhos custavam:
Primeiro banho de proa, $120 réis; Banho de proa, $100; Banho de chuva, $160; Banho reservado, $200; Banho grande, $120; Banho de ré, $080; Banho geral, $060.
A Barca "Deusa dos Mares"
Esta barca em especial, tem uma história curiosa e digna de menção. Terá pertencido outrora à praça de Lisboa e fazia a carreira da Índia debaixo do nome "Maia Cardoso". Mais tarde, foi armada em vaso de guerra, e por esse motivo mudou de feição e de nome. Passou a chamar-se "Trovoada" e assistiu impassível, no alto mar, à desencadeada luta dos elementos, pois era feita de madeira de teca e da melhor construção, prestando serviços à armada e ganhando mais um título à estima pública. Seguiram-se os anos e o vaso de guerra voltou ao Tejo. Cansado já da glória, e depois de se ter tornado útil ao comércio e à marinha, foi vendida por três contos a Vicente Grimar, desarmou-se dos apetrechos bélicos, e ataviou-se elegantemente como Barca de Banhos denominada, com um nome pomposo "Deusa dos Mares". Era muito bem conceituada, porque teve diversos melhoramentos, a ponto da barca chegar a conter 31 banhos a estibordo e bombordo, sendo estes divididos em banhos diferentes, como por exemplo: 4 banhos de chuva, 2 reservados e 3 grandes, tendo a facilidade de reunir 3 banhos num só, quando se dava o caso da família ser numerosa. Como se todos estes atractivos não fossem bastantes, tinha mais 2 magníficos banhos gerais com o comprimento de 102 pés ingleses, e a conveniência de servir um dos banhos de escola de natação, descobrindo-se metade, e tornando-se por tanto muito mais claro do que os outros. Davam-se, também banhos quentes em tinas e igualmente mornos de chuva. O que sobretudo demonstrava claramente a excelência desta barca era o estar colocada na corrente da água e os banhos de proa serem "tão fortes e cristalinos como o das praias". A bordo, ainda havia um "bufete", onde os banhistas encontravam sempre um bom serviço e preços acessíveis. Havia sempre à disposição dos frequentadores da "Deusa dos Mares" 3 botes no cais do Terreiro do Paço e 2 no Cais do Sodré. Esta barca media da proa à popa 156 pés ingleses e 61 de boca, sendo por conseguinte a maior embarcação, ao seu tempo. Sensivelmente entre o ano de 1872 e o de 1874 as condições da água do rio devem-se ter alterado, assim como as instalações da barca devem ter-se deteriorado, talvez por falta de manutenção, assunto esse que foi remediado dando origem a um curioso anúncio publicado no Diário Ilustrado de agosto de 1874, que diz o seguinte:
"Esta barca acha-se fundeada defronte do Arsenal da Marinha, no local, onde a corrente da água é puríssima, mesmo na baixa-mar, por estar convenientemente afastada da canalização dos despejos da cidade. Depois dos melhoramentos que a empresa, como costuma, realizou este ano, foi a Barca vistoriada pelos peritos do Arsenal da Marinha, em virtude do que o Ilm.º e Exm.º Sr. Capitão do Porto deu o seguinte despacho ao requerimentos que nessa ocasião se fez. Tendo-se passado vistoria e sendo esta de parecer que a barca se acha em boas condições, para o serviço a que é destinada, concedo a licença pedida para vir para a sua amarração. - Departamento do Centro, 26 de Julho de 1874."
A publicação deste despacho garantiu a solidez das obras realizadas e desvanece quaisquer dúvidas, que por ventura houvessem a tal respeito. A boa ordem, asseio e comodidade são rigorosamente observados, como convêm em estabelecimento de tal ordem. O banho geral para homens corre em volta da popa da barca e mede 102 pés, sendo por tal motivo apropriado para o exercício de natação, sem que haja perigo. A bordo alugam-se roupas, assim como se ministram banhos mornos.
Mas num dos relatos mais detalhados, o do Eng.º e historiador Augusto Vieira da Silva (1869 - 1951), que ainda frequentou estas barcas em 1875, na companhia de sua mãe, descreveu em detalhe e rigor, como eram estas Barcas de Banhos do Tejo: "Tratavam-se de velhos cascos de barcos que se adaptavam a essa nova aplicação. Para esse efeito, ao longo de uma coxia longitudinal de circulação no convés, adaptava-se, a cada um dos costados, de proa à popa, uma estrutura de madeira semelhante a uma longa caixa, com tecto, dividida interiormente por tábuas transversais em celas ou compartimentos, com uma porta para o convés na parede anterior. Constituíam essas celas as barracas, para os banhistas se vestirem e despirem. Os compartimentos alongavam-se para fora do convés do barco, e as suas paredes laterais e as posteriores, que desciam vedadas até ao nível da água, prolongavam-se para baixo deste nível com a forma de gaiolas, com três das suas paredes feitas de grades de sarrafos, e com o fundo de tábuas de soalho, que ficava cerca de 1,30 m abaixo do nível normal da água nos compartimentos. Deste modo, cada barraca podia considerar-se formada por dois compartimentos sobrepostos: um aéreo, com o pavimento ou estrado a nível do convés, no qual os banhistas se preparavam para o banho; outro aquático ou submerso, ou poço onde se tomava banho, limitado pelo gradeamento de sarrafos e pelo costado do barco. Como os barcas estavam fundeadas, a água corrente do rio atravessavam os diversos compartimentos, pelos intervalos das grades de madeira o que proporcionava aos banhistas água corrente, com alguns encontros inesperados com peixes, alforrecas e uma ou outra imundície que vagueava pelo rio."
Em finais do século XIX, também Raphael Bordallo Pinheiro (1846 - 1905), dedicou a sua peculiar ironia às Barcas de Banhos do Tejo, na revista "O António Maria" de 16 de setembro de 1880, deixando-nos rico relato e picarescos detalhes desta prática terapêutica.
Apesar do uso ainda das Barcas de Banhos, o grande impulso à procura das praias para banhos, deu-se a partir da década de 70 do século XIX. O rei D. Luiz I (1838 - 1889) e a família real portuguesa, começaram a mudar-se com alguma regularidade para a Cidadela de Cascais durante o Verão, o que foi amplamente publicitado na época e levaria muitas famílias a procurar seguir-lhes o exemplo. Passou a ser moda da sociedade lisboeta ir para Cascais na época estival. Até à inauguração do caminho de ferro e das 11 estações entre Pedrouços e Cascais, em 1889, a viagem até a esta Vila só podia ser feita num barco dos Vapores Lisbonenses, dotados com salão de fumo e cadeiras estofadas, ou num carrão que transportava 36 pessoas, em qualquer dos casos, o percurso demorava quatro horas para cada lado. As já conhecidas praias do Bom Sucesso, da Torre de Belém, Pedrouços, Algés e da Cruz Quebrada, na zona ribeirinha do Tejo, em finais do século XIX princípios do século XX tiveram então o seu grande apogeu. O areal do limite sul do sítio de Pedrouços era o seu grande motivo de fama na 2ª metade do século XIX, já que depois de Belém era a praia dos arrabaldes de Lisboa mais procurada pela aristocracia, pela alta burguesia e até pela intelectualidade da época. A praia de Pedrouços, "formosa estação de banhos", como era conhecida, com as suas famosas barracas de banhos, é considerada a praia precursora das praias do Tejo. Em 1870, esteve na sua quinta em Pedrouços, junto à margem esquerda da ribeira de Algés, o duque de Cadaval, aí usufruindo dos banhos de mar e da mata. As praias de Pedrouços, Belém e Algés passaram a ser consideradas praias mundanas, razão pela qual eram muito concorridas por quem queria ver e ser visto, a praia da Cruz Quebrada era considerada uma das mais discretas. Existem referências para o ano de 1873 da presença igualmente nesta praia da Viscondessa de Algés, do Conde de Casal Ribeiro, de Fortunato Chamiço (1815 - 1895) e do escritor Eça de Queiroz (184 - 1900), com as suas famílias.
Com o progresso dos meios de transporte da cidade de Lisboa, nomeadamente os carros americanos da CCFL (Companhia Carris de Ferro de Lisboa) a partir de 1872, a linha de caminho de ferro de Cascais da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portuguezes em 1889, a possibilidade da deslocação dos banhistas e veraneantes lisboetas para zonas balneares de qualidade, que começam a estar na moda, faz com que vão desaparecendo as Barcas de Banhos. Além de tornarem as viagens cinco vezes mais rápidas, os caminhos-de-ferro estimularam a descoberta das praias, com a criação de "bilhetes de temporada de banhos de mar e águas minerais", válidos por 60 dias entre julho e outubro. Estes bilhetes para a temporada de banhos iriam manter-se até ao século XX, dada a sua grande procura pela população lisboeta. Alguns dos artistas da época representaram nos seus quadros essa nova moda que se estava a instituir aos poucos na sociedade lisboeta de então, durante aqueles períodos do ano, as praias e banhos de mar. Para além das casas de veraneio que começam a proliferar nessas zonas balneares, também surgem os hotéis, junto à praia de banhos de Pedrouços por exemplo, como o Hotel Tejo e o Hotel Club, mesmo junto à estação de caminho de ferro. O habito de fazer praia, foi essencialmente elitista, ligado à aristocracia e à burguesia endinheirada, durante todo o século XIX e até durante o inicio e meio do século XX. Apesar do impacto decisivo do comboio no aumento do número de banhistas, não havia misturas de classes. À medida que a burguesia foi enchendo as praias da Linha de Cascais, a seguir à Torre de Belém e Pedrouços, a aristocracia aproximou-se da família real e concentrou-se em Cascais. Com isto e a par com as Barcas de Banhos que ainda restavam, as praias de banhos, para quem preferia, foram-se sucessivamente deslocando para a foz do rio Tejo e para mais distante. Aos poucos no final do século XIX desaparecem do rio Tejo as Barcas de Banhos e os alfacinhas vão mudando os seus hábitos de verão. Durante muitos anos, estas embarcações adaptadas, as famosas Barcas dos Banhos, acabaram por fazer parte da paisagem e do quotidiano do rio Tejo na região de Lisboa, tal como as restantes embarcações típicas nele existentes. No fim do século XIX, início do século XX, apesar de alguns proprietários de Barcas de Banhos ainda que fizessem questão de as manter activas, assim como os pequenos botes catraios para o transporte dos poucos clientes banhistas, era possível, segundo relatos, ver restos de uma dessas Barcas de Banhos abandonada e a apodrecer no areal na zona da Junqueira.
Texto:
Paulo Nogueira
Fontes e bibliografia:
Sketches of Portuguese Life, manners, costume and character, London, Geo. B. Wittaker, 1826
Diario Illustrado de 24 de julho de 1872
Visconde de Benalcanfor, Diário Illustrado, 31 de julho de 1874
Revista O António Maria de 16 de setembro de 1880
Olisipo: boletim do Grupo "Amigos de Lisboa", A. XIII, n.º 49, janeiro 1949