NATAIS EM LISBOA
A época natalícia nas grandes capitais tem características que são o resultado das mistura de várias tradições de todo o país, pois a população migrante que nelas reside tem muita influência das suas regiões de origem. No entanto há tradições que resultaram um pouco dessa miscelânea e o facto de serem grandes cidades onde o comércio é variado e nível de vida um pouco mais elevado, tudo contribuiu para se criarem características e tradições muito próprias, Lisboa no caso, não foi excepção. Um dos "quadros" que mais emprestavam a Lisboa desde finais do século XIX, o carácter de uma época festiva, tal como hoje as grandes iluminações das ruas e das poucas montras que ainda restam, era o tradicional aparecimento dos vendedores de perus. Com a ajuda de longas canas conduziam e mantinham os bandos de perus em perfeita disciplina, soltando ao mesmo tempo os seus ululantes e estridentes pregões:
"Méér-c´ò casál de perús!…
Perú salôôiô! É sa-lôôiô!!!
Olha óóó pru da roda vó-óóó-a!"
Por tradição no início do mês de dezembro e até ao Natal, começavam a aparecer os saloios trazendo consigo bandos de perus pelas ruas da zona da Baixa, Largo de São Domingos, até ao Rossio e Restauradores, apregoando bem alto os méritos das aves. Na primeira década do século XX, no Largo Trindade Coelho e Largo do Camões, outra das zonas onde se concentravam os mercadores de perus, brandindo as suas longas canas. Os vendedores traziam-nos em grupos, fazendo-os avançar por cenários improváveis como os prédios modernos das Avenidas Novas de Lisboa. Os regulamentos municipais de higiene pública e o comércio de porta aberta acabaram com esta tradição natalícia. A tradição de vender perus nas ruas de Lisboa na época do Natal durou pelo menos até às primeiras décadas do século XX, no entanto em algumas zonas dos arredores de Lisboa até meados dos anos 60 do século XX ainda era possível ver este tipo de vendedores por altura do Natal. Igualmente Lisboa parece ter contribuído para algumas das iguarias de Natal cada vez mais comum a todo o país com o... bolo-rei. Este chegou à capital em 1869, através da Confeitaria Nacional, na Rua da Betesga junto à Praça da Figueira. Foi, segundo registos, Baltasar Rodrigues Castanheiro Júnior, o filho do fundador deste estabelecimento, que trouxe de Paris a receita do bolo-rei que era feito por um mestre confeiteiro, o Gregório, que também veio de Paris. O bolo terá sido momentaneamente vítima da política, quando, depois do fim da monarquia e com a instauração da República, alguns defenderam que ele teria de acabar ou mudar de nome. Mas manteve-se, tal como as tradições, até hoje. Passou a ser tradição de muitos lisboetas e das suas famílias ir comprar o famoso Bolo rei à Confeitaria Nacional, tal como outras excelentes iguarias ali comercializadas, nem que para isso se espere pela vez de ser atendido nas longas filas que todos os anos ali se formam até tarde, faça chuva ou frio.
E como o Natal é considerado das crianças, a chegada dos brinquedos à Kermesse de Paris, na Baixa, era um ritual que assinalava a proximidade da quadra, e deliciava as crianças. Inaugurada em novembro de 1901, a Kermesse de Paris, situada na Rua 1.º de Dezembro (Rua do Príncipe, antes da implantação da República), entre os Restauradores e o Rossio, era a loja de brinquedos mais conhecida e mais cara de Lisboa, situada no edifício do luxuoso Avenida Palace Hotel, ao lado da Tabacaria A Fénix, onde os fumadores elegantes da capital se forneciam de tabaco. No início do mês de dezembro de cada ano, dava-se o ritual anual da chegada dos brinquedos que iam ser vendidos no Natal naquele estabelecimento. Muitas crianças ficavam a olhar, deliciadas, para os brinquedos que eram transportados para o interior da loja, alguns já desencaixotados, caso dos cavalinhos de rodas, feitos de massa. Era também tradição os jornais lisboetas irem fotografar o momento da chegada dos brinquedos natalícios à Kermesse de Paris e fazerem a respectiva reportagem, para publicar nas edições do dia seguinte. A Kermesse de Paris chegou a ter uma filial no Estoril, aberta em dezembro de 1928, nas Arcadas do Parque, no lado oposto ao Casino Estoril e baptizada Kermesse do Parque. A loja não chegou a celebrar os seus 100 anos, porque fechou em 1990, deixando Lisboa, e a Baixa, sem a sua principal referência no comércio de brinquedos. No entanto outros estabelecimentos igualmente com tradição neste tipo de comercio e que faziam as delicias de miúdos e graúdos surgiram como a Casa Biaggio Flora, na Rua do Ouro, especialista em comboios eléctricos miniatura e na mesma rua da Baixa Pombalina, a mais antiga casa de comércio de brinquedos da capital o Bazar do Povo Pires & Thadeus, aberta desde 1860, ainda hoje existente. Muitos estabelecimentos de brinquedos lisboetas, optam por colocar um figurante vestido da figura típica do Pai Natal como atracção para a pequenada, um sucesso que até hoje se verifica em certos pontos de comércio nesta quadra. A tradição da árvore de Natal em Portugal foi trazido por D. Fernando II, duque de Saxe-Coburgo-Gotha, marido da rainha D. Maria II e instalada pela primeira vez no Paço Real das Necessidades, em Lisboa em meados do século XIX. Nas décadas seguintes, o hábito foi sendo adoptado aos poucos pelas camadas mais abastadas da população, generalizando-se e perdura até hoje, passando a ser adoptada a tradição de juntar o pagão da árvore de Natal ao Presépio de Natal cristão. Passou por isso a ser tradição no início do mês de dezembro, em alguns pontos específicos da cidade de Lisboa ver vendedores ambulantes a vender pinheiros naturais, o cheiro do pinheiro invadia os espaços de venda. Um dos pontos tradicionais era junto ao chafariz de Benfica. Esta tradição que se manteve até finais dos anos 80 início da década de 90 do século XX. Restam as recordações e saudades de um tempo que passou.
Os anos 20 e 30 foram anos de paz, embora em termos económicos a população pouco melhorou, mas o Natal continuo com o seu espírito bem vivo e presente neste período para uma parte dos lisboetas, de um modo geral. No início dos anos 40, com a Europa mergulhada na guerra, o ambiente em Portugal não podia ser de grande animação, mesmo sem o país estar directamente envolvido no conflito. Eram tempos de escassez, era preciso poupar, e qualquer sinal de ostentação no Natal só podia ser visto como de mau gosto. Havia, apesar de tudo, uma feira de brinquedos na Praça Luís de Camões que era, na descrição do Século Ilustrado; "a grande atracção das crianças de Lisboa, das crianças pobres sobretudo". E esse espectáculo das crianças a ver aquele mundo inverosímil dos bonecos em papelão, carrinhos, comboios e aviões em madeira e chapa, que querem tanto como a um tesouro, todos a dez tostões, lançou o repórter numa prosa inspirada: "Os olhos dos pequenitos! São eles que nós vamos ver nas feiras de brinquedos para que uma vez por ano possamos vislumbrar a Felicidade nos olhos de alguém." E o culminar dramático: "Felicidade... aquela boneca que nos partiram..." Mas ainda assim neste período difícil da história do mundo, em Lisboa sentia-se o espírito da época natalícia, principalmente na felicidade dos mais pequenos. Já as secções de brinquedos dos Armazéns do Chiado e do Grandela, eram outro paraíso para as crianças e famílias no período do Natal. Estes espaços enchiam-se de famílias para ver e comprar, por vezes com grandes dificuldades, um boneco de celulóide, um carrinho, um comboio ou um aeroplano a corda em chapa, que ia tornar a vida das suas crianças ainda mais feliz. A revista Eva Natal era habitual fazer o seu sorteio anual de vários prémios de valor, iniciativa que a transformou numa verdadeira instituição nacional. Havia 200 premiados, com brindes que iam de compras à escolha do contemplado no valor de 25 contos mais um bilhete inteiro da Lotaria do Natal até, para os últimos lugares, um romance de Stefan Zweig, passando por um casaco de peles, um vestido de malha de lã, caixas com seis pares de meias de seda ou um romance da Biblioteca da Mulher Moderna.
Em 1945, os portugueses e o mundo festejam finalmente o primeiro Natal sem guerra. Os anunciantes descontraem. Os slogans surgem "Quer agradar à sua esposa? Ofereça-lhe um Electrolux. Aspiradores de pó, enceradoras, frigoríficos." E tornam-se mais ousados: "Quer dar uma prenda que nunca seja esquecida? Seja criança ou adulto, se ela gostar de Desenho, é porque tem habilidade. Oferece-lhe um curso de Desenho (método americano de estudo em casa). Será um alegre passatempo que poderá trazer uma bem paga profissão." As ourivesarias e relojoarias de Lisboa abrem as portas fora de horas das 21h:00 às 24h:00 e convidam o público a apreciar as suas montras com as maiores novidades para a época de Natal. Um acontecimento, surgido pela primeira vez em 1944, começava já a revelar-se como a grande instituição que viria a ser. A iniciativa era do jornal Diário de Notícias, e este não deixava os créditos por mãos alheias. "Dentro de sete dias", anunciava a 18 de dezembro de 1945, "o Natal dos Hospitais", uma tradição que se renovou e manteve. Já depois do final do conflito, e a pouco menos de 10 dias do Natal de 1949, a 16 de dezembro, várias "barraquinhas" ergueram-se na Praça da Figueira e no Largo de Camões, para a venda de brinquedos bem diferentes dos que são oferecidos, para aquelas cujas carteiras não acompanhavam as grandes lojas do Chiado, tal como os brinquedos que encantavam as crianças da Casa Bénard, Kermesse de Paris, ou bem defronte desta última, a então Casa Pinóquio. O plástico foi a grande revolução nas décadas de 50 e 60 do século passado. Bonecas e carrinhos de plástico. A lata é substituída a pouco e pouco pelo plástico, e em alguns casos, havia brinquedos que apresentam ambos os materiais. São exemplo disso a máquina de costura, o ferro e tábua de engomar, a batedeira eléctrica, entre outros da fabrica Jato. O preço final do brinquedo fica mais barato. Ainda assim, conta o jornal Diário de Lisboa de 24 de dezembro de 1965 que… "o Natal é a época dos meninos que, felizes, escolhem dentro das lojas os brinquedos que vão possuir e dos meninos que de fora, nariz "esborrachado" contra o frio dos vidros das montras, olham os brinquedos que nunca terão…"
Os lisboetas gostavam de dar prendas aos 120 sinaleiros que regulavam o trânsito, desde carroças a peões além de veículos motorizados. Tudo terá tido início em 1932 quando o ACP lançou uma campanha entre os automobilistas que consistia em deixar uma prenda ao sinaleiro na época de Natal. Os automobilistas corresponderam em massa e durante alguns anos tornou-se tradição. Era então normal ver na época de Natal as peanhas nos pedestais ou simplesmente nos locais onde os sinaleiros operavam repletos de prendas. Esta tradição natalícia foi interrompida no período da II Grande Guerra e depois retomada em 1949. Em locais mais centrais da cidade, como Praça dos Restauradores, cruzamento da Rua Garrett e Rua do Carmo, do Rossio e da Avenida da Liberdade. Dois dias antes do Natal, era montada a decoração e os postos de recolha dos presentes, ali deixados por empresas e por particulares apostados em cair nas boas graças de determinado sinaleiro. Ali eram depositadas as ofertas dos cidadãos, de todo o tipo, desde garrafas de azeite, bacalhau, garrafões de vinho e de aguardente, sacos de batatas, mas havia também vinho do Porto, bolachas, arroz, açúcar, carvão, tabaco e botas. Havia quem até animais vivos deixasse como oferta. Parte das ofertas era entregue a instituições de caridade, mas os sinaleiros conseguiam arrecadar um cabaz de Natal bastante invejável.
O mundo começava a mudar e um dos factores dessa mudança era a televisão, que chegou a Portugal em 1957. O programa "Natal dos Hospitais", conta agora com a colaboração da Radiotelevisão Portuguesa e da Philips portuguesa. Portugal parece mais aberto a esse mundo que lhe chega agora pela televisão. Passa a ser uma tradição desde 1958 e que até hoje entretêm muitos espectadores durante o dia nesta quadra natalícia entre os últimos retoques nas decorações de Natal e algumas compras de última hora. Surgem os Cabazes de Natal que prometiam televisões, aspiradores, ferros de engomar e outros electrodomésticos ponta de gama e a revista Eva Natal incluía mil presentes, desde moradias completamente mobiladas a perfumes. O nível de vida dos portugueses ia subindo gradualmente, mas nos anos 60 muitas famílias ainda podiam ser descritas como "remediadas". O dinheiro "ia dando", mas para um dia "um bocadinho melhor" era preciso fazer algumas economias. Não é por acaso que em 1960 surge o Cabaz do Natal, uma iniciativa do Clube das Donas de Casa, que se torna um enorme sucesso. Nos primeiros meses do ano começava a aparecer nas revistas o anúncio ao cabaz, com o respectivo boletim de inscrição. Uma família sorridente - pai, mãe, avó e neta - olha encantada para o que vai receber no Natal por um custo de 650 escudos (pouco mais de três euros), pago em prestações mensais de 65 escudos: latas de "Atum Toneca", "Nesquik", "Tomate Guloso", "Nescafé", "Puré de Batata Maggi", "Bolachas Triunfo", vinho do Porto, brandy, espumante, vinho de mesa, uma "maravilhosa boneca", um "brinde para o marido" (será o saco de água quente que se vê na imagem?), brinquedos, leite creme, fruta líquida, chocolates, caramelos e drops, e muitas outras coisas. As montras da Baixa de Lisboa eram uma das atracções nesta quadra, famílias vinham "à Baixa " para ver as montras como que num ritual anual. A Sapataria Lord, na Rua Augusta, preparava um montra luxuosa a combinar com a quadra e o Coliseu dos Recreios abria portas ao Circo de Natal, um espectáculo que sobreviveu até à actualidade. Em 1965, havia dois espectáculos à tarde, uma sessão às 14h:30 e outra às 17h15 e a entrada era gratuita para as crianças entre 6 e 10 anos. O Grandioso Espectáculo, no entanto, era a grande atracção: acontecia na véspera de Natal às 21h:30 e só podiam entrar público com mais de 6 anos. Toda a cidade mergulhava no espírito natalício, a pastelaria Cinderela avisava os clientes para encomendarem os bolos-rei com antecedência porque as filas seriam grandes.
A tradição das iluminações de Natal das ruas na cidade de Lisboa teve início oficialmente em 1957 embora haja registos de anos antes se iluminarem algumas ruas por esta época do ano. Estas decorações, que foram evoluindo a cada ano, ajudavam a dar ás ruas e praças da cidade um clima característico da época com muita luz e cor. São muitos os registos fotográficos desse espectaculoso de luz e cor associados ao clima da quadra. Sair de casa com um frio, capaz de congelar até os ossos, nunca foi impedimento para muitas famílias irem ver as luzes de Natal à Baixa. Para alguns essa tradição foi passando de geração em geração, e hoje é quase como se fosse um compromisso ao qual ninguém pode faltar. A ligação das luzes de Natal em Lisboa continua sendo um dos momentos altos da época natalícia na cidade, com todos à espera para saber em que dia vão ser iluminadas muitas das principais artérias da capital, principalmente a árvore gigante instalada na Praça do Comércio. Utilizando em outros tempos as lâmpadas de incandescência e actualmente os modernos sistemas de lâmpadas LED, não deixa de manter o mesmo encanto desta tradição que se generalizou em pouco por todo o Pais. As tradições natalícias de outros tempos hoje são memórias de muitos, as montras da Baixa das grandes casa na grande maioria acabaram, muito do comércio tradicional acabaram e muito se perdeu. Acabaram os concursos, os policias sinaleiros com as suas oferendas, os vendedores de pinheiros e artigos de Natal. O consumismo de outros tempos tomou lugar nas grandes superfícies e Centros Comerciais da capital. Surgiram os Mercados de Natal em alguns pontos da cidade de Lisboa como a Praça da Figueira, Praça D. Pedro IV no Rossio, Praça Luís de Camões, e Praça do Município. Tudo mudou, tudo passou, mas o espírito natalício ficou e ainda é sentido ainda que de forma diferente.
A TODOS VOTOS DE UM SANTO E FELIZ NATAL!
Texto:
Paulo Nogueira
Fontes e bibliografia:
Revista O Occidente de 21 de dezembro de 1890
Revista Ilustração Portuguesa, nº 879, de 23 de dezembro de 1922
DINIS, Calderon, Tipos e Factos da Lisboa do Meu Tempo (1900-1974), Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986
DIAS, Marina Tavares, Lisboa Desaparecida. vol. 3, edições Quimera, 1990
MÓNICA, Maria Filomena, O Filho da Rainha Gorda - D. Pedro V e a sua mãe, D. Maria II, edições Quetzal Editores, 2008, Lisboa
Alexandre Prado Coelho in jornal Público, 2010
SERRÃO, Verissimo, O pinheiro da festa do Natal nas suas reminiscências, encantações e equívocos, Correio do Ribatejo, 2016
























































Sem comentários:
Enviar um comentário