Durante os séculos XVII, XVIII e XIX vão surgindo grandes quintas nos arredores da cidade de Lisboa que eram constituídas, na sua maioria, por uma propriedade com casa apalaçada de dois pisos, térreo e superior, área de lazer, jardins, capela e equipamentos de apoio às actividades agrícolas como estrebarias, currais, campos de rega e poços. Eram na sua maioria casas de campo da elite da capital Lisboa onde se juntava o lazer ao rendimento. A cidade de Lisboa devido ao seu clima, luz, situação geográfica e sendo a capital de um vasto império colonial durante séculos, resultaram numa grande quantidade de palácios e quintas mandados construir por famílias nobres ao longo dos tempos. É pois vasta a quantidade de quintas, palácios e palacetes na cidade de Lisboa e nos seus arredores, algumas destas propriedades já desaparecidas ou em vias de desaparecer, mas também alguns casos excelentes exemplos de restauro e reedificação. Umas sendo propriedades privadas ou do Estado, com mais ou menos importância que outras, mas todas elas integradas numa zona, num tempo e época com histórias para contar, influenciando de forma directa e indirecta a origem de certas localidades, assim como toponímias da capital. De todas essas propriedades, existentes, é aqui dado a conhecer alguns desses exemplos.
Quinta do Outeiro ou Quinta de Nossa Senhora dos Prazeres
Situa-se esta propriedade na actual Rua Luís de Camões, antigo caminho do Outeiro, na freguesia das Águas Livres do Concelho da Amadora, território alterado de forma negativa pela urbanização intensiva e pela abertura de vias rápidas, sendo o impacto da IC 19 bastante notório por se situar imediatamente a sul dos edifícios classificados. Desconhece-se ao certo a data da construção primitiva da Quinta do Outeiro (Oiteiro) de Baixo, antigo nome do local onde esta propriedade se situa. Segundo nos informa o Padre Álvaro Proença (1912 - 1983), em 1703 a Quinta era designada como Quinta do Marquês ou do Coculim, podendo assim estar associada às propriedades do Marquês da Fronteira. A disposição dos imóveis forma um conjunto de planimetria irregular, destacando-se a casa principal senhorial, uni-familiar, com pórtico, um pátio interior e uma capela datada de 1720, como se pode comprovar na data que encima a porta do respectivo local de culto. É plausível que o palacete da Quinta tenha sido objecto de várias transformações, conforme atesta a inscrição colocada no portal de entrada: "Q.D.N.S. DOS PRAZERES 1731". Segundo Anne Stoop na sua obra Quintas e Palácios nos Arredores de Lisboa (1986): " (...) a parte mais antiga foi alargada no rés-do-chão mediante um pórtico incorporado no edifício e uma galeria que o prolonga. Esta é simultaneamente sobrelevada por um andar ao qual se pode aceder através de uma escada surpreendentemente rústica para uma casa deste tipo. O pórtico, incorporado, permite integrar habilmente na mesma fachada a capela e parte da habitação".
Terá este imóvel sido amplamente beneficiada em 1720 por António Manescal, conhecido impressor e livreiro lisboeta, que, para além de impressor do Santo Ofício, foi livreiro da Casa do Infantado (1695) e da Casa Real (1711), para além de Familiar do Santo Ofício (1699), teve a mercê de Cavaleiro Fidalgo (1713). A maior ampliação foi construção de uma nova ala, a nascente, que integrava a actual frontaria, de composição sóbria e rectilínea. Foi também criado um espaço coberto de acesso à capela e esta passou a dispor de um coro alto. No interior, a pequena capela combina lambris de azulejo azul e branco com vasos floridos, do primeiro quartel do século XVIII, com talha dourada no altar, sob um tecto de estuque trabalhado. Nesta entrada têm-se acesso também à zona residencial dos proprietários, situada no primeiro piso, e ainda a uma extensa galeria, ao nível do rés-do chão, que não tem mais nenhuma comunicação com as restantes áreas do edifício. De acordo com os registos da Câmara Eclesiástica de Lisboa, António Manescal obteve licença para edificar e posteriormente se dizer missa (de 7 de Agosto) na ermida que mandara edificar na sua Quinta do Outeiro de Baixo, na freguesia de Benfica. Inicialmente a ermida que era então dedicada ao Seraphico São Francisco, invocação com que aparece referida em 1763 na obra do "Mappa de Portugal Antigo e Moderno" do Padre João Baptista de Castro. Relativamente à capela do edifício mais antigo, situada na extremidade do corpo principal, é de destacar uma fachada com duas pilastras de canto com cornija realçada e um frontão contracurvado que, ao centro, apresenta um medalhão onde se inserem as iniciais da "Virgem Maria". A fachada é ainda rematada no topo por uma cruz em ferro ostentando, também, uma janela alta que se integra, de forma harmoniosa, no nível de janelas com o mesmo desenho do piso superior do edifício residencial. Ao lado da capela existiu um conjunto de sinos, já desaparecidos. O vestíbulo comum da casa e da capela, está ainda decorado com um silhar de azulejo recortado, representando cenas da vida de santos, com molduras rococó, policromas. Terá sido ainda durante o século XVIII, provavelmente por volta de 1720, que por motivo de partilhas a propriedade terá sido dividida, dando origem a outra propriedade, a Quinta de Santa Tereza, ficando esta paralela à propriedade original. Sobre esta outra propriedade pouca informação existe, sabe-se que foi habitada pelos descendentes de um dos seus últimos proprietários até finais dos anos 90 do século XX e depois vendida para outro tipo de construções ali serem implantadas. Desta propriedade pouco de origem ficou, restou o edifício da Quinta, muito adaptado e transformado, tendo recebido obras de melhoramento e uma "cosmética" exterior para parecer um edifício de época. No seu interior mantiveram-se alguns traços originais, que os actuais proprietários tentam manter e preservar para que não se percam, em especial alguns painéis de azulejos de finais do século XVIII.
Segundo o "Rol de Confessados" de Benfica de 1764 (livro ou registo elaborado por cada igreja paroquial, com o objectivo de registar quem se confessava durante a quaresma de cada ano e continha os fogos existentes em todas as ruas da povoação, cada um com um número, dando conta de quem lá morava, incluindo criados e crianças), esta propriedade, por esta época, era também conhecida como a Quinta do Capitão do Outeiro, por ali viver o Capitão Gregório José de Mello que, de acordo com um requerimento enviado então à Câmara Eclesiástica, afirma que comprara a propriedade a uma José Victório da Rocha e a reformara com a capela, que havia ficado arruinada no Grande Terramoto de 1755, passando esta a ser dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres. O altar da capela foi benzido em 25 de Julho de 1764, pelo cura de Benfica, Padre João da Mata. Este edifício, ainda segundo registos, seria originalmente de um só piso, durante o Grande Terramoto de 1755, sofreu alguns danos e após este trágico acontecimento foi alvo de restauro e obras de ampliação, passando a dispor de um primeiro piso. De referir que esta zona dos arredores da cidade de Lisboa foi pouco afectada pelo trágico Terramoto de 1755. Este primeiro piso do edifício é construído recorrendo à nova técnica pombalina da gaiola anti sísmica, pode ver-se esse detalhe nas paredes de algumas dependências, pelos danos causados recentemente por actos de vandalismo no imóvel. O interior do edifício de habitação é decorado com azulejos pombalinos datados de 1760-1770, num programa composto por sumptuosos motivos em trompe l'oeil (técnica artística que, com truques de perspectiva, que cria uma ilusão óptica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir três dimensões), de gosto neoclássico com composições historiadas em telas nas paredes no salão nobre e alegorias sobre as "Quatro Estações" e os "Cinco Sentidos" na galeria do rés-do-chão. A galeria do rés-do-chão está forrada, até meia altura, com azulejo recortado de moldura policroma, típica do terceiro quartel do século XVIII, e tem conversadeira nos vãos das janelas. Na parede poente são ainda visíveis as janelas da primitiva edificação. Dispõe de uma ampla cozinha de onde se destaca a grande chaminé. Em 1764, ainda segundo os registos do referido padre, a propriedade é designada como Quinta do Capitão do Outeiro. Neste ano, terá ali vivido o padre Manuel de Carvalho, capelão da Ermida de Nossa Senhora dos Prazeres desta mesma quinta. Ainda segundo os mesmos registos, há ainda referencia à existência de um caseiro, um carreiro, um escravo, um mulato e uma quantidade de criados completavam o pessoal da casa que incluía um mestre de meninos. Ao longo de toda a centúria de Setecentos a propriedade foi sendo sucessivamente habitada e gerida pelos caseiros e capelães responsáveis pelo oratório privado, donde se depreende que os donos apenas se deslocavam à Quinta em alguns períodos do ano. A par com a área agrícola, bastante vasta e murada, dispondo de janelas com "bancos dos namorados" nos muros protegidas por gradeamentos que funcionavam como mirantes, hoje em grande parte expropriada. Existia um sistema de rega com água fornecida por um poço com nora e sendo atravessada, no terreno actualmente expropriado, a parte inicial original da Ribeira de Algés. De referir que a nascente original desta ribeira se situava onde hoje está o complexo do Estado Maior da Força Aérea Portuguesa. Junto ao conjunto habitacional da Quinta do Outeira, dispunha esta casa ainda de um jardim em socalco com tanques, poço com nora, dois relógios de sol instalados em alguns pontos da área ajardinada e algum arvoredo diversificado. Para além dos armazéns anexos existia ainda um lagar para a produção de azeite e outro para a produção vitivinícola. A capela da casa, que terá sido profundamente reformulada na segunda metade do século XVIII, alberga um altar de talha dourada de gosto barroco, apresentando ainda, no tecto estucado, uma representação da Assunção da Virgem. Em 1765, o capelão da ermida é o Padre Manuel Fernandes Trigo que por sua vez também administrava a casa e os criados. Há registos de que cerca de 1769, o caseiro é um italiano, de seu nome Hierónimo André.
Até finais do século XIX a devoção a Nossa Senhora dos Prazeres era festejada em romaria na zona, todas as segundas feiras de Páscoa. Eram esses festejos realizados anualmente na segunda feira depois do domingo de Páscoela, havia grandes festejos com missa cantada e sermão. Armava-se junto a esta propriedade um grande arraial frequentado por gentes das redondezas que ali acorriam. Também alguns ex-votos que existiram na capela, demonstram o reconhecimento da população relativamente aos poderes curativos de um pequeno poço protegido por uma abóbada em tijolo, que ainda existente integrado num ambiente urbano, e se situa junto da Quinta. Num registo notarial de Abril de 1769, é relatado um episódio curioso que parece confirmar que esta era bastante frequentada pelo povo da redondeza, naquele registo, o Capitão Gregório José de Mello e seu irmão Manuel Caetano de Mello declaram perdoar as pessoas que se acharem culpadas na arruada (ou assuada) e distúrbio que houve no pátio da quinta deles durante os festejos, o que sucedera a 2 daquele mês perto da meia noite. Nos anos seguintes, são os capelães que administram a casa, depreendendo-se que os donos só iriam à Quinta em temporadas de verão, como era tradição do século XIX. Já no século XIX, em 1811, a Quinta pertencia a Francisco José Maria de Brito. Em 7 de Abril de 1849 era descrita como: "Quinta do Outeiro, junto ao logar da Buraca, em Bemfica; consta de casa nobre, casa de caseiro, e todas as necessárias officinas; tem excellente agoa nativa, com sua nora, e compõe-se de um pomar de laranja, horta, e vinha".
Em registos já do início do século XX, consta que a Quinta do Outeiro ou de Nossa Senhora dos Prazeres, pertenceu a António de Mesquita até 1905. Anos mais tarde, é adquirida por um antepassado da família Canas da Silva, da qual os actuais donos descendem. A casa da propriedade será, ainda durante meados do século XX, adaptada a fábrica de curtumes. Posteriormente, em 1957, foram feitas obras de beneficiação no edifício devido aos estragos provocados por este tipo de actividade industrial ali instalado. Neste espaço do casario das propriedades, Quinta do Outeiro ou de Nossa Senhora dos Prazeres e Quinta de Santa Tereza, formou-se um pequeno conjunto habitacional, constituído por alguns empregados da propriedade e seus descendentes, que as habitaram até finais da década de 90 do século XX. Nos finais dos anos 70 do século XX, a casa da propriedade, é alugada e habitada por uma família, não pertencente aos proprietários, que terá alterado e danificado algumas partes do interior do edifício com o objectivo de adaptar o espaço a residência. Devido à construção da Radial da Buraca, do conjunto original que a compunha, resta apenas a casa solarenga, a capela e alguns edifícios anexos. É propriedade particular e encontra-se classificada como Imóvel de Interesse Municipal, no entanto o conjunto habitacional esta a degradar-se e as entidades que deveriam zelar pela preservação nada fazem a avaliar pelo estado em que se encontra o que resta do imóvel. Há registos de graves actos de vandalismo e roubos que danificaram o interior de algumas partes e até dependências do edifício principal da Quinta do Outeiro. De referir que esta propriedade chegou a estar em venda mas sem sucesso de encontrar comprador, continua sendo propriedade privada.
Texto:
Paulo Nogueira
Fontes e Bibliografia:
CASTRO, Padre João Baptista de, Mappa de Portugal Antigo e Moderno, tomo III, parte V, Lisboa, 1763
PROENÇA, Padre Álvaro, Benfica através dos tempos, Lisboa, edição Ulmeiro, 1954
STOOP, Anne de, Quintas e Palácios nos Arredores de Lisboa, Lisboa, Civilização, 1986
CALDAS, João Vieira, A Casa Rural nos Arredores de Lisboa no Século XVIII, Lisboa, 1987
Sem comentários:
Enviar um comentário