quinta-feira, 3 de julho de 2025

ANTÓNIA CUSTÓDIA DAS NEVES

Do mistério, ao amor e à tragédia... 



Nascida por volta de 1851, Maria Trindade ou Antónia das Neves, era natural de Quintela da Lapa (Sernancelhe), foi criada com mais 9 irmãos como rapaz na aldeia de Granja do Tedo, em Tabuaço, onde sua mãe, Maria das Neves ou "Maria Coroada", uma figura singular que, décadas antes, fundara uma seita religiosa conhecida como "o sisma da Granja do Tedo", na sua terra natal. Seita esta que em meados do século XIX deu muitas preocupações às autoridades da região. Mistério ou não, Antónia na sua juventude começou a usar roupas masculinas e continuou a usá-las por alguns anos. Vestiu-se como rapaz e adoptou o nome de António das Neves, estatuto que manteve, na escola e no trabalho à jorna pelo Douro. Durante o tempo em que viveu como homem, Antónia, trajava-se com estilo e cuidado da época, usava jaquetão de ratina, chapéu baixo de feltro, calças de casimira, camisa com folhos e botões de ouro. No colete, exibia uma corrente dourada e levava sempre consigo um relógio de bolso. Era descrita como elegante, simpática e com bastante sucesso entre as jovens da sua idade. Uma delas chegou mesmo a escrever-lhe:

"Quando fores minha esposa; / serás feliz, venturosa. / Terás tudo quanto possuo / minha bela, minha rosa…" . 

Após a maioridade e em busca de uma vida melhor, Antónia, ou António como se assumia, mudou-se para a cidade do Porto e conseguiu trabalho como caixeiro de balcão numa taberna em Vila Nova de Gaia e mais tarde na cidade do Porto. Levava uma vida feliz, com o seu emprega na cidade grande na sua falsa identidade masculina de António das Neves.


Aldeia da Granja do Tedo na actualidade onde Antónia Custódia das Neves foi criada (arq. priv.)

Ponte romana na aldeia da Granja do Tedo na actualidade onde Antónia Custódia das Neves foi criada 
(arq. priv.)


Casa onde Antónia Custódia das Neves terá sido criado por sua mãe Maria das Neves ou "Maria Coroada"
 com os seus 9 irmãos na aldeia de Granja do Tedo na actualidade (arq. priv.)


Estilo de vestir da época que Antónia Custódia das Neves 
trajava na sua identidade masculina 
de António das Neves 
(arq. pess.)



Na primavera de 1871, uma simples ida à taberna na Rua do Bonjardim revelou uma história que viria a agitar toda a cidade do Porto. José Ribeiro dos Santos, chefe da 1.ª esquadra da polícia, dirigiu-se ao estabelecimento de António Joaquim da Silva, onde foi atendido por um jovem educado e de aparência marcante, que se apresentava como António Custódio das Neves. No entanto, algo no aspecto delicado e nas formas do "moço" chamou a atenção do experiente agente… Movido pela desconfiança, o polícia questionou-o sobre o serviço militar e acabou por levá-lo para a esquadra da Rua de Cima do Muro da Ribeira. Não resistindo à pressão do interrogatório sofrido, "o jovem" fez uma revelação surpreendente: era, na verdade, uma mulher de 20 anos chamada Maria Trindade, embora fosse conhecida como Antónia Custódia das Neves, natural da Granja do Tedo, no concelho de Tabuaço. Após a confissão, foi detida e entregue ao comissário, que de imediato a encaminhou para o tribunal. O juiz ordenou-lhe para passar a usar as roupas próprias ao seu sexo. Não é totalmente claro se fazer o contrário era contra as leis da época, mas pelo menos parecia ofender a ideologia do seu tempo, e ela passou a fazê-lo, apesar da fama que as vestimentas masculinas lhe tinham trazido. A notícia da "mulher disfarçada de homem" espalhou-se rapidamente e, no dia seguinte, dominava as manchetes dos jornais do Porto da época. 

O Jornal do Porto escreveu: "É o assunto forçado de todas as conversações e não há ninguém nesta cidade que deixe de fazer os comentários mais extravagantes." 

Já o jornal A Voz do Povo optou por um tom mais humorístico, publicando até uma quadra popular: "Oh! Salve, Antónia Custódia! / Ó grande celebridade! / És pérola de virtude / Nesta perdida cidade…" 

No tribunal de São João Novo, António ou Antónia confirmou tudo o que dissera à polícia no interrogatório. Após ser examinada por médicos, foi libertada. À saída, uma multidão a esperava com entusiasmo, tratando-a como uma autêntica heroína pela coragem que demonstrou ter. Foi um acto de muita coragem uma mulher numa época de tantos preconceitos e regras rígidas ter tido esta atitude perante a sociedade de então. Mistério ou não, há quem apoie a teoria de que Antónia Custódia das Neves, vestia-se de homem, para ter oportunidades de trabalho. Na altura as mulheres não tinham as mesmas oportunidades que os homens e famílias que só tivessem mulheres como filhas, usavam por vezes esta estratégia. Recorde-se que este caso não foi único na história.


Ambiente de taberna idêntica à onde António das Neves trabalhou na cidade do Porto 
como caixeiro de balcão (arq. pess.)


Tribunal de São João Novo no Porto em meados do séc. XIX, 
onde decorreu o processo de Antónia Custódia das Neves 
no ano de 1871 (arq. pess.)



As duas primeiras  fases da vida de Antónia Custódia das Neves 
em ilustração da revista Pontos nos  ii's em 1888 
(arq. pess.)



No entanto, oito anos depois desta ocorrência, em abril de 1879, Antónia casou-se na igreja de Santo Ildefonso com António Joaquim da Silva Júnior, de apenas 19 anos, por quem se apaixonou, filho do dono da taberna onde começara toda esta história. O casal viveu feliz... e por algum tempo toda a história passada foi quase esquecida. Apesar de nesse mesmo ano de 1879, ser editada uma obra hoje rara, de título Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo, com autores sob a forma de pseudónimos (i.e. Patrício Lusitano e Pantaleão Froilaz), que embora dedicado à mãe de Antónia, não deixa de relembrar e referir a filha e toda a façanha da dupla identidade e vida que levou. Mas agora como Antónia Custódia das Neves e Silva, era apaixonada pelo rapaz com que se casou, mesmo sem filhos e descendência, levavam uma vida pacata de classe média da cidade do Porto. O único registo fotográfico conhecido de Antónia será deste período, ostentando um trage típico domingueiro. A tragédia na vida deste jovem casal chegou no dia 20 de março de 1888, 9 anos após o enlace e de uma vida feliz.  Antónia e o marido estavam a assistir a um espectáculo integrado na festa de benefício do actor Firmino Rosa, no prestigiado Teatro Baquet, na Rua de Santo António, (actual Rua 31 de Janeiro), quando um incêndio brutal deflagrou no palco e consumiu em poucas horas todo o interior do teatro, incêndio este provocado por um bico de iluminação a gás de uma gambiarra. Da programação extensa incluía nesse dia a ópera cómica "Dragões de Vilares" e a zarzuela "Grã via". Consta que o casal morreu ali, carbonizado, juntamente com mais de 120 pessoas nunca identificadas. Foi uma das maiores tragédias ocorridas na cidade do Porto. A morte de Antónia Custódia no fatídico incêndio comoveu o país, algumas publicações da época voltaram a relembrar esta figura carismática e até os poetas populares lhe prestaram homenagem. Um deles escreveu: "Era um rapaz às direitas; / a Maria da Trindade / Todas as moças bem feitas, / inda a choram com saudade…"  Antónia Custódia das Neves foi uma mulher à frente do seu tempo pela coragem, livre e determinada nas suas atitudes perante a sociedade do seu tempo. Viveu como quis e morreu ao lado do amor da sua vida. Por tudo isso, foi uma figura carismática portuguesa que merece ser lembrada.



Igreja St.º Ildefonso na cidade do Porto, onde Antónia das Neves casou em 1879, 
com António Joaquim da Silva Júnior, foto, Guedes (col. pess.)


Página do livro Maria Coroada ou o Scisma da Granja do Tedo
 com referencia à filha, Antónia Custódia das Neves em 1879 
(arq. priv.)


Aspecto da cidade do Porto onde o casal vivia feliz em meados dos anos 80 do séc. XIX 
na Rua do Carmo junto à Praça Gomes Teixeira (arq. priv.)


Único registo fotográfico de Antónia Custódia das Neves e Silva 
com tráge típico domingueiro (arq. priv.)



Fachada do Teatro Baquet do Porto onde Antónia Custódia das Neves e Silva e
 António Joaquim da Silva Júnior iam assistir a um espectáculo
 in Diário Illustrado de 1888 (arq. pess.)



Ilustração do fatídico incêndio do Teatro Baquet do Porto 
em 20 de março de 1888, onde o casal perdeu a vida,
 in Diario Illustrado de 1888 (arq. pess.)

Aspectos da tragédia do incêndio no Teatro Baquet no Porto onde perderam a vida 
Antónia Custódia das Neves e Silva e o marido em 1888,
 ilustração da revista Pontos nos ii's (arq. priv.)


As três fases da vida de Antónia Custódia das Neves e Silva 
em ilustração da revista Pontos nos  ii's em 1888
(arq. pess.)




Texto: 

Paulo Nogueira


Fontes e bibliografias:

LUSITANO, Patrício e FROILAZ, Pantaleão, Maria Coroada ou o Scisma da Granja do TedoVerdadeira História da Mulher Homem ou Antonio Custodio das Neves ou Antonia Custodia das Neves, Typographia de Manoel José Pereira, Porto, 1879

Diário Illustrado de 22 de março de 1888, Impr. de Souza Neves, Lisboa

Revista Pontos nos ii's de 5 de abril de 1888, Lytographia Guedes, Oficina de Justino Roque Gameiro Guedes, Rua da Oliveira, ao Carmo, 12, Lisboa,1888


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