A primeira grande conturbação urbana da Primeira República portuguesa...
No dia 19 de novembro de 1911, instalaram-se no Hotel Algarve na Rua da Padaria nº 24, na Baixa de Lisboa, duas curandeiras chinesas, provenientes de Xangai. Pouco mais de um ano tinha passado após a implantação da República em Portugal, uns meros meses após a aprovação da primeira constituição republicana e como Presidente da República o Dr. Manuel de Arriaga (1840 - 1917), isto enquanto a norte se vivia um jogo de toca-e-foge com as hostes monárquicas de Henrique Mitchell de Paiva Couceiro (1861 -1944). As referidas senhoras chinesas, ao que consta irmãs, de nome Ajus a mais velha com 33 anos e Joé a mais nova com 29 anos, haviam atravessado o sul de Espanha, permanecendo algum tempo em Huelva e Sevilha, e depois rumaram ao Algarve, tendo passado algum tempo em Loulé e Faro antes de rumarem a Lisboa. As duas orientais, o marido de Ajus, de seu nome Sain Chain e os dois filhos, saíram de Xangai quatro meses antes, tendo percorrido a Áustria, Itália e França, antes de chegarem Espanha, com o mesmo intuito de negócio de curandeiras. Joé também casada terá deixado um filho entregue aos cuidados da avó na China. As duas irmãs Ajus e Joé depois de instaladas no hotel com a família, descansaram da viagem na sua primeira noite em Lisboa e, na manhã seguinte, acompanhadas de um cicerone, meteram-se num trem de aluguer e foram até ao Terreiro do Paço, onde abriram de imediato um consultório ao ar livre, vendo-se em poucos minutos cercadas de enfermos rendidos às suas enigmáticas intervenções. Este aparato deu nas vistas perante as autoridades, o que seria apenas o princípio de uma conturbada história. As duas irmãs chinesas, de pequena estatura rapidamente ganhariam fama e apoio popular pela sua alegada capacidade de curar problemas oftalmológicos através da aplicação de curativos e de massagens que culminavam na extracção dos "bichos" causadores das afecções oculares. Ambas apenas falavam a sua língua nativa, o mandarim, fazendo-se entender por sinais e um mau pronunciado castelhano. Segundo os registos da época referem sobre os seus supostos tratamentos: "extraindo dos olhos […] uns bichos parecidos com os alimentados no interior dos frutos". Este suposto tratamento consistia em, após aplicar algumas gotas de um líquido, massajar as fontes com "dois pauzinhos" de sândalo, fazendo sair "bichos" dos olhos dos doentes. Várias pessoas afirmam ter recuperado a visão após o tratamento das "chinesas milagrosas", o que arrasta multidões, algumas vindas até de fora da capital, esperançosas de encontrarem curas para as suas doenças de olhos. As irmãs chinesas inicialmente, apenas aceitavam dos mais remediados as voluntárias contribuições que entendessem ofertar, nada exigido por caridade aos pacientes mais pobres. Eram às centenas as pessoas para obter este tratamento "miraculoso" na Rua da Padaria que as curandeiras efectuavam no quarto do Hotel Algarve onde residiam. O jornal O Século anuncia estarem estas curandeiras a devolver a vista a cegos com esta técnica. Por sua vez o jornal A Capital na sua edição de 20 de novembro de 1911, publica na primeira página um cartoon de sátira aos supostos tratamentos das curandeiras chinesas. De referir que neste período havia inúmeros tipos de curandeiros para quase todos os males, alguns até anunciavam nas importantes publicações da época.
Estes ajuntamentos de muitos mirones junto da improvisada clínica a céu aberto no Terreiro do Paço e no Hotel Algarve, ia crescendo, atraindo por isso cada vez mais as atenções das forças policiais. Entretanto, as autoridades intervêm e o Governador Civil de Lisboa, Francisco Eusébio Lourenço Leão (1864 - 1926), ele próprio médico de formação, proíbe as curandeiras de realizar consultas, alegando prática ilegal de Medicina. Confrontado com as declarações de melhoras dos doentes, diz, em entrevista ao jornal A Capital, tratar-se apenas do poder da sugestão e denuncia os perigos sanitários das intervenções das curandeiras afirmando: "Eu sinto grande comiseração por esses infelizes que, na ânsia de uma cura, ou mesmo de simples melhoras, se abalançam a tudo, fazem os maiores sacrifícios e crêem nos milagres com que pretendem explorá-los criaturas sem escrúpulos; mas o dever de todos nós, que conhecemos a ignóbil exploração, é defendê-los mesmo contra eles próprios, evitando não só essa exploração como sobretudo os perigos que dela resultam." Porém, o seu grande sucesso gerou enorme afluência às ruas envolventes do hotel, a histeria colectiva popular cresce e verificar-se-ia mesmo algum tumulto por parte dos populares que tentavam aceder às "consultas" dadas no referido hotel onde permaneciam. Entendendo que eram a ignorância e o desespero do povo o que levava tantos doentes a procurar as curandeiras, Francisco Eusébio Lourenço Leão, decidiu “defendê-los mesmo contra eles próprios” e fez parar a prática destas. Esta actuação gerou um enorme movimento de protesto popular. Criaram-se comissões populares para interpelação do parlamento, Governo Civil, Ministério do Interior e até do Presidente da República, em defesa de Ajus e Joé, pedindo inclusive que as curandeiras possam exercer livremente as suas actividades. Considerado o tema escaldante, o ministro do Interior remete-o para o Parlamento, onde só Manuel de Brito Camacho (1862 - 1934), médico, politico e jornalista, ousa afirmar tratar-se de um mero assunto de polícia. Não obtendo grande resposta, a contestação popular continuou com ajuntamentos nas imediações do hotel e grandes filas de cegos e pacientes oftalmológicos. A 25 de novembro, as autoridades por ordem do Governo Civil, entram com dificuldade devido aos ajuntamentos, no Hotel Algarve e mesmo perante o impedimento da multidão, encaminham as duas curandeiras e família dali para um comboio que os conduz até Vila Franca de Xira, tendo sido depois metidas numa carruagem de 2.ª classe no comboio para Badajoz, acompanhadas de 4 guardas, numa expulsão expedita do território português. Esta decisão governamental de expulsão das chinesas, ira acender um rastilho de protestos, no Parlamento e nos ministérios, congregando multidões em inflamados comícios. Muitas das publicações da época satirizaram a situação de diversas formas. O problema, no entanto, estava apenas a começar, porque o "sequestro" das misteriosas mulheres orientais fez vir ao de cima uma ira popular imprevista. De repente, as chinesas pareciam representar toda uma promessa de um futuro melhor que a recém experimentada República tardava em cumprir.
No dia seguinte, a 26 de novembro, uma comissão composta por António Bellá, Constantino Mendes, Gaspar da Silva, Manuel Augusto Ferreira, Júlio Cruz, José da Veiga, Armando Almeida, e José Candeias, resolve promover um comício de protesto contra a expulsão das "Chinesas dos Bichos" às 2 horas da tarde, junto à Igreja dos Anjos: ouvem-se inflamados discursos, a indignação aumentou grandemente de tom, invocando-se abuso da autoridade republicana e ilegalidade nos procedimentos contra as estrangeiras. Gerou-se um comício de protesto junto à igreja dos Anjos que percorrerá Lisboa, com várias deambulações desde a Avenida Almirante Reis até chegar ao Rossio, onde uma tentativa de intervenção de António Maria de Azevedo Machado Santos (1875 - 1921), a grande figura da implantação da República, terminará em perseguição e no cerco com a destruição da loja Casa das Águas onde este se refugiou. A multidão encaminha-se em massa para a Rotunda, onde se realiza novo comício. Daí, a multidão marcha pela Avenida da Liberdade em direcção ao Governo Civil. Como Francisco Eusébio Lourenço Leão não estava presente, a multidão dispersou, e parte seguiu para a redacção do jornal republicano A Lucta, onde se manifestou contra o seu fundador Manuel de Brito Camacho. Receando-se mais manifestações, e devido à proximidade da multidão à residência do Presidente da República Dr. Manuel de Arriaga, que na época era o Palácio da Horta Seca, montaram guarda em frente ao palácio, uma força de infantaria e uma outra de cavalaria da Guarda Nacional Republicana. A intervenção de marinheiros e da cavalaria da Guarda Nacional Republicana consegue resgatar António Maria de Azevedo Machado Santos, que acaba saindo num automóvel da loja Casa das Águas onde se mantinha refugiado da ira popular. Mas os tumultos continuam e de forma mais acesa no Rossio, até que por fim, junto ao café A Brazileira do Rossio (estabelecimento inaugurado nesse ano de 1911), se dá uma intensa troca de tiros entre populares e a guarda durante a noite. Destes desacatos e troca de tiros ficaram marcas bem visíveis com furos dos tiros nas montras do famoso café lisboeta, havendo relatos de mais estabelecimentos danificados na mesma zona como a sucursal no Rossio do jornal O Século. Da troca de tiros entre a guarda e o povo resultaram em 46 feridos, cinco dos quais em estado grave. Dos feridos em estado grave vieram a resultar duas vítimas mortais. Foram as vítimas mortais o chapeleiro José da Costa Cabral, de 30 anos, que faleceu na manhã do dia 27 na Enfermaria de São Sebastião do Hospital de São José, após ter sido atingido com dois tiros no peito na Rua do Amparo e a segunda vítima mortal, o ourives João Borges dos Santos de 17 anos com um tiro na cabeça quando atravessava o Rossio. Houve ainda a registar várias detenções entre eles o sindicalista Constantino Mendes. Foi igualmente detido em Sacavém de um dos organizadores de um comício a favor das chinesas. Muitas das publicações da época deram ênfase a este acontecimento, em especial a revista Illustração Portugueza do dia 4 de dezembro de 1911, onde foram publicadas fotos e relatos dos acontecimentos mais marcantes.
Um acontecimento caricato este à primeira vista, retratado por muitos ilustradores em forma de caricaturas alusivas ao assunto em diversas publicações, mas no qual uma análise mais profunda consegue detectar sinais de certa uma insatisfação que se fazia sentir, que irá aflorar com muito maior pungência em momentos posteriores. Treze meses apenas tinham passado sobre a implantação da República em Portugal, Lisboa e depois outros pontos de País foram assolados por uma tal revolta popular, que o novo sistema político e os seus protagonistas tremeram na base. E o que esteve na origem de tal tumulto não foram os realistas que ainda brandiam armas no Norte e esgrimiam argumentos nos tribunais que os julgavam por conspiração mas sim duas simples curandeiras populares. A elite republicana via-se como sendo agente duma modernização necessária da sociedade portuguesa. Um movimento que teria de se realizar, à força se necessário, imposto num povo pouco escolarizado e do qual essa mesma elite desconfiava, considerando-o pouco capaz e manipulável. Concluindo, a populaça acusava o regime republicano de todos os seus males. A retórica anti-republicana que aflorou a espaços nos discursos dos protestos da "chinesas dos bichos" não desmente a possibilidade de manipulação temida por muitos dirigentes republicanos. A actuação das autoridades, com motivos legítimos, foi transformada num abuso destinado a favorecer os privilégios dos médicos, alegadamente apenas interessados em dinheiro e não em resultados, promovido por um deles, Francisco Eusébio Lourenço Leão, um republicano convicto. Mas mesmo na primeira página do jornal A Capital, jornal de tendência republicana, do dia seguinte, aparece a crítica de que o grande potenciador do grau dos tumultos foi a atitude superior e dogmática das autoridades, e o recurso inicial a violência policial desnecessária. Perante uma população gravemente necessitada de cuidados médicos, presa a uma vida de grandes dificuldades neste período, não terá havido a necessária abordagem pedagógica, observa-se. A intervenção de António Maria de Azevedo Machado Santos viria demasiado tarde, com os ânimos já exaltados, e acabaria não só por falhar nos intuitos de acalmar e explicar, como seria mesmo o rastilho que alimentaria o fim trágico dos protestos. Cúmulo das ironias, António Maria de Azevedo Machado Santos, o vencedor da revolta da Rotunda, fundador da República, torna-se de súbito o inimigo público dos que, um anos antes, o haviam levado em ombros e aplaudido. Apesar destas críticas, a postura dogmática e de modernização forçada continuaria a ser a abordagem prevalecente nos anos que se iram seguir. Numa sessão do parlamento o deputado Adriano Mendes de Vasconcellos (1867 - 1946), acusa o Governo de "abuso de poder" e de "ataque à Constituição" no resgate das chinesas. O Ministro da Interior Silvestre José Falcão de Sousa Pereira de Berredo (1866 - 1927) , argumenta terem sido as próprias curandeiras a querer sair "apavoradas com o barulho que se fazia em volta delas". Na resposta, o deputado põe termo à discussão ironizando a situação afirmando que: "...foi facílimo compreender que as chinesas o que queriam era ir-se embora, para se verem livres da perseguição do povo!..." Com isto a oposição conservadora e tradicionalista acabaria por tirar dela uma boa vantagem, aproveitando para fazer comícios em volta do caso e atacar adversários políticos. Tudo para decepção dos republicanos, que julgavam Lisboa positivista e livre-pensadora. Assim terminará o estranho episódio das "Chinesas Milagrosas", a primeira grande conturbação urbana da Primeira República portuguesa. As duas irmãs chinesas curandeiras saíram de Portugal em direcção a Espanha e aí, ao que foi noticiado, regressaram à sua actividade "clínica", o que as levaria a ser novamente expulsas. Ninguém mais soube do seu paradeiro durante algum tempo. No entanto em 1912 surge um registo de uma notícia de que as "chinesas dos bichos" tinham sido desmascaradas desta vez no Brasil. Médicos brasileiros teriam descoberto o truque das curandeiras na cidade do Rio de Janeiro, as quais escondiam larvas de moscas debaixo da língua e que eram cuidadosamente levadas por meio de pauzinhos para os olhos dos supostos pacientes. Sendo este truque muito usual à época em algumas partes da China e nomeadamente em Macau. Segundo registos e noticias, este caso das duas irmãs chinesas curandeiras não terá sido o único ocorrido no Brasil. A partir daqui nada mais se soube das duas irmãs chinesas Ajus e Joé. Mesmo com a notícia publicada mais tarde sobre a denúncia das chinesas, tal não parece ter afectado a aura das curandeiras perante o povo simples, ignorante e carente. Afinal, acreditar naquilo em que se quer acreditar, seria o principio de terapia da sugestão. Não deixou este episódio aparentemente banal por razões de fanatismo e crença popular, causar os primeiros tumultos urbanos na Primeira Republica portuguesa, outros se seguiriam por motivos diferentes e perante o descontentamento do povo das gerações vindouras. Com o tempo outros problemas mais prementes surgem em breve na sociedade portuguesa, tal como uma sucessão de greves, um golpe de estado contra o regime de Manuel de Arriaga e a acelerada cadência de novos governos que se instalou neste período. No entanto este fenómeno das chinesas curandeiras, com todo o mal estar gerado entre povo apoiante e governo contra, assim como entre facções politicas que se aproveitaram para conseguir vantagens tendo o povo do seu lado, continua muito actual na nossa sociedade.
Texto:
Paulo Nogueira
Fontes e bibliografia:
Jornal A Capital nº 473 de 20 de novembro de 1911
Jornal A Capital nº 479 de 26 de novembro de 1911
Brasil - Portugal, revista quinzenal ilustrada, nº 309 de 1 de dezembro de 1911
Illustração Portugueza, nº 302 de 4 de dezembro de 1911
O Malho, nº 496 de 16 de março de 1912
FERNADES, Joaquim, As Curandeiras Chinesas, Um motim que abalou a I República, 1ª edição, Editora gradiva, Lisboa, 2014
Desconhecia esta história.
ResponderEliminarApesar de serem duas irmãs intrujonas, muito deram que falar
Obrigada Paulo pelo belo trabalho
Muito obrigado uma vez mais pelo seu comentário e apreciação. Esta questão foi de facto uma farsa que arrastou multidões e deu tanto que falar a todos os níveis sociais e políticos, causando mal estar entre a classe politica da época. Sinais de um tempo em que as tradições e as crendices populares ainda imperavam numa sociedade pouco ou nada instruída, no entanto este fenómeno de aproveitamento de certas questões sociais por parte dos políticos continua muito actual na nossa sociedade.
EliminarInteressante história, continuação de bom trabalho.
ResponderEliminarMuito agradecido pelo seu comentário e apreciação.
EliminarFoi de facto uma história que poderia ter sido banal como tantas semelhantes nesta época mas que no entanto acabou por ser marcante e arrastar multidões descontentes que se revoltaram, também pelo período um tanto conturbada que politicamente já se começava a viver.
Olá Paulo, ando há cerca de 1 ano com esta história. Gostava de partilhar consigo algumas ideias sobre esta "intrujice". Pode indicar-me um mail. abraço
ResponderEliminarOlá e obrigado pelo contacto. Terei todo o gosto em partilhar mais ideias e assuntos sobre esta "intrujice" histórica que fez correr tanta tinta na época e que mexeu com tanto a nível social e político.
EliminarUm abraço.
Este é o meu email, pode contactar-me:
geral.pnp@gmail.com
Todos os detalhes foram por mim coligidos e integrados sob a forma de romance na obra "As curandeiras chinesas" - Um motim que abalou a I República", (Lisboa, Gradiva, 2015) hoje esgotado mas eventualmente disponível nos alfarrabistas. Cumprimentos, Joaquim Fernandes
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário e pela obra que publicou de extrema importância para memória futura e apoio a trabalhos sobre o tema. Tenho um exemplar da sua obra e foi a leitura da mesma, juntamente com alguns conhecimentos que já tinha sobre este episódio histórico, que me levaram a ter a ideia de elaborar este artigo e investigar sobre o assunto, para assim desta forma dar a conhecer ao mundo e aos seguidores, toda a trama deste episódio. Recomendo no entanto a aquisição e leitura sua obra, em forma de romance, extremamente bem elaborada com a descrição da época em detalhe.
EliminarCumprimentos
Paulo Nogueira.